segunda-feira, 20 de abril de 2015

O jogo das hipóteses e a confusão do Estudo PROMISE


O ensaio clínico PROMISE foi apresentado em março no congresso do American College of Cardiology e simultaneamente publicado no New England Journal of Medicine. Passadas algumas semanas, começo a perceber interpretações equivocadas destes estudo, que nos serve de gancho para uma interessante discussão a respeito do que chamo de jogo das hipóteses científicas. 

O PROMISE estudou 10.000 pacientes com indicação de pesquisa de doença coronária, randomizados para duas estratégias de investigação não invasiva: teste anatômico (tomografia de coronárias) ou funcional (teste ergométrico, cintilografia miocárdica ou eco-estresse). O objetivo foi avaliar a influência da estratégia de investigação nos desfechos cardiovasculares. 

Não houve diferença alguma entre os dois grupos na incidência do desfecho primário (3.3% versus 3.0%). A despeito disso, estranhamente, muitos estão interpretando o resultado do PROMISE como indicativo de que a melhor estratégia é a avaliação funcional. Vejam nos exemplos abaixo, como há uma conotação negativa para a tomografia de coronária. Ou uma conotação positiva para testes funcionais. 

UpToDate: A randomized trial compared coronary computed tomographic angiography (CCTA) and functional testing and clinical outcomes over a median follow-up of two years were similar for both groups. We continue to recommend functional testing as the initial test for most patients with suspected coronary artery disease.

The Heart: CT angiography does not reduce coronary events compared with functional tests.

A razão destes estranhas interpretações está no jogo das hipóteses. Mas antes de explicar o que ocorreu neste trabalho, vamos revisar os diferentes testes de hipóteses que se adequam a ensaios clínicos randomizados: superioridade unidirecional, superioridade bidirecional e não inferioridade. O uso de hipóteses inadequadas gera vieses cognitivos de interpretação do resultado, como veremos a seguir. 

Os 3 Tipos de Hipóteses


A superioridade unidirecional é o tipo que estamos mais acostumados e se aplica quando precisamos demonstrar a eficácia de uma estratégia para que se justifique sua utilização. Esta eficácia diz respeito a duas situações: (1) uma conduta deve ser superior à ausência de conduta; (2) uma conduta nova deve ser superior a uma conduta antiga quando esta conduta antiga já teve sua eficácia anteriormente comprovada. Estas duas situações se diferenciam pelo grupo controle. No primeiro caso, o grupo controle é não fazer a conduta (placebo, sham ou controle aberto). No segundo caso, o grupo controle é a estratégia tradicional. 

Embora o teste estatístico de comparação seja sempre bicaudal nesta situação, o ônus da prova é unidirecional, pois o único resultado que influencia nossa conduta médica é a superioridade da nova proposta.

Antes de indicar reposição para pessoas que tem vitamina D baixa, precisamos demonstrar que esta estratégia é eficaz clinicamente, comparada a placebo. Este é exemplo da ausência de estratégia como grupo controle. Por que eu faria vitamina D se esta não fosse superior a não fazer vitamina D? Percebam que o ônus da prova está na superioridade.

Já o estudo PARADIGM-HF pretendeu demonstrar que LCZ696 é melhor que enalapril na insuficiência cardíaca. É um exemplo de que no novo precisa se provar melhor do que o antigo que já foi comprovado no passado. É o que se chama de eficácia comparativa. Por que eu trocaria enalapril por esse tal de LCZ696 se este não fosse superior? Não há vantagens práticas desta nova droga, e provavelmente ela viria com um maior custo. Mesmo se tivesse um custo igual, o tradicional é comprovado há muitos anos, está dando certo e já somos experientes com enalapril. Então porque mudar? Não haveria porque mudar se o LCZ696 fosse apenas igual ao enalapril. 

A segunda situação que discutiremos é da hipótese de não inferioridade. Esta se aplica quando já existe uma conduta tradicional comprovada e a nova proposta traz alguma vantagem prática (mais simples de usar, mais segura, menos traumática). Neste caso, a nova proposta não precisa ser mais eficaz do que a tradicional, só precisa não ser muito pior. Daí testamos sua não inferioridade. Vejam postagem antiga sobre este tipo de desenho.

É o caso de demonstrar que um novo anticoagulante (que não necessita de controle do TP) é não inferior ao cumarínico; demonstrar que o fondaparinux (que sangra menos) é não inferior à enoxaparina; ou a tentativa mal sucedida do recente trial BEST em demonstrar que intervenção coronária percutânea com stent everolimus (tratamento menos traumático) é não inferior à cirurgia de revascularização. 

Por fim, temos uma situação menos frequente, que é a superioridade bidirecional, o caso do estudo PROMISE. Nesta situação, temos duas estratégias e não há uma grande preferência por uma delas. Ambas são não invasivas; se considerarmos o funcional mais utilizado, a cintilografia, ambas as estratégias oferecem ao paciente uma certa dose de radiação. Se por um lado a tomografia usa contraste, a cintilografia às vezes usa dipiridamol (que causa grande desconforto). E por aí vai, vantagens e desvantagens para os dois lados. 

Do ponto de vista prático, há pacientes que se adequam melhor a uma estratégia, outros à outra estratégia. Mas se houver uma estratégia superior em eficácia, esta será a primeira opção independente de questões de ordem prática. E isso valerá para qualquer dos lados. O ônus da prova é bidirecional.

Aí vem o desvio de hipótese promovido pelo estudo PROMISE. Inadequadamente, os autores descreveram um objetivo unidirecional, "testar a hipótese de que o prognóstico de pacientes submetidos ao teste anatômico seria superior aos pacientes submetidos ao teste funcional". Não há razão para que o ônus da prova esteja na tomografia. Mas o desvio na descrição da hipótese gerou o fenômeno de ancoragem cognitiva na maioria dos leitores. 

Ancoragem Cognitiva


Este fenômeno cognitivo foi primeiro demonstrado por Daniel Kanheman e Amos Tvesky, dois psicólogos israelenses que ganharam o prêmio Nobel por descreverem nosso principais vieses cognitivos. Em um de seus experimentos, Kanheman pergunta a um grupo de competentes corretores se eles acham que o valor de um certo imóvel avaliado é maior ou menor que 10 milhões de dólares. Após responderem, os voluntários recebem uma segunda pergunta: e quanto você acha que vale o imóvel? A média da resposta foi algo como 7 milhões. Em seguida, ele mostra o mesmo imóvel a um segundo grupo de competentes corretores, só que troca a primeira pergunta. Desta vez, pergunta se o apartamento vale mais ou menos que 1 milhão de dólares. Isto fez com que a média da resposta à segunda pergunta fosse 3 milhões. Percebam que a primeira pergunta induziu a resposta da segunda pergunta. A segunda pergunta foi “ancorada” pelo efeito da primeira pergunta. 

Observem que especialistas em apartamento estavam na ilusão de que decidiam o preço baseado em sua experiência. Na verdade, morro de medo de pessoas que se acham muito experientes (especialistas), pois estas esquecem do benefício da dúvida e abrem a guardam para vieses cognitivos. 

E foi isso que aconteceu com o estudo PROMISE. A hipótese colocou o ônus da prova na tomografia de coronária e no momento em que esta não conseguiu se provar melhor, a negatividade do resultado ancorou a tomografia para um status abaixo dos exames funcionais. Parece um erro primário cometido por especialistas que escrevem o UpToDate. Mas assim são os vieses cognitivos, nos influenciam de forma inconsciente. É por isso que o pensamento científico precisa ser organizado de uma maneira cuidadosa.

Se reconhecemos esta hipótese do PROMISE como bidirecional, podemos reformular a interpretação. Se nenhuma estratégia foi superior, temos a liberdade de escolher a que melhor se adeque ao paciente.

O PROMISE nos mostra que vieses não provém apenas da metodologia dos trabalhos. Às vezes, o viés está em nossa mente, de maneira involuntária. Tenho dito que o raciocínio científico deve ser permeado pela humildade em reconhecer a incerteza de nossas crenças. A segunda razão para humildade é reconhecer as armadilhas de nosso pensamento. 

terça-feira, 7 de abril de 2015

Choosing Wisely


Em 2012, o American Board of Internal Medicine iniciou nos Estados Unidos a campanha Choosing Wisely, que hoje se expandiu oficialmente para outros países, como Canadá, Inglaterra, Alemanha, Itália, Holanda, Suíça, Austrália, Nova Zelândia e Japão. Este países estão agrupados no denominado Choosing Wisely International. Esta iniciativa serve de inspiração para qualquer país que insiste em imitar o padrão americano de consumo de recursos pseudo-científicos. O Brasil é um deles.

Choosing Wisely poderia ser traduzido como "usando de sabedoria nas escolhas” ou “escolhendo sabiamente”. Esta iniciativa surge da percepção de que há falta de sabedoria na utilização exagerada ou inapropriada de recursos em saúde. Choosing Wisely é uma campanha que vai ao encontro do paradigma Less is More, já comentado tantas vezes neste Blog. 

Seria impositivo e mal recebido se o American Board of Internal Medicine iniciasse uma campanha contra condutas normalmente adotadas por especialidades médicas. Desta forma, ao invés de criticar os especialistas, a responsabilidade da auto-crítica foi dada a eles. Assim, foi solicitado às especialidades que apontassem condutas médicas correntes que não deveriam estar sendo adotadas. Isto obrigou os próprios especialistas a refletirem e contra-indicarem suas próprias condutas fúteis. 

Outro aspecto enfatizado pelos organizadores é que as recomendações do Choosing Wisely não têm o intuito primário de economizar recursos, mais sim de melhorar a qualidade da assistência , que deve ser embasada em evidências, aumentando a probabilidade de benefício e reduzindo o risco de malefício à saúde dos indivíduos. 

Além disso, considerando nosso momento atual, vale também salientar que esta não é uma iniciativa governamental nestes países, pelo contrário, é iniciativa da própria sociedade médica. 

O Choosing Wisely recomenda o que não devemos fazer. Traz um paradigma interessante, pois normalmente somos treinados a discutir o que devemos fazer. Os guidelines falam muito mais no que devemos fazer, do que não devemos fazer. E as recomendação do não fazer (recomendação grau III) normalmente se limitam a condutas comprovadamente deletérias. No entanto, além da prova do dano,  outras razões para não adotarmos condutas. Ou colocado de outra forma, não significa que temos que fazer algo só porque não é deletério. 

O ônus da prova está no desempenho (eficácia) e utilidade (relevância) de uma conduta. Assim, os seguintes motivos podem justifica que não se adote certas condutas:

1) Terapia prejudicial - isso é óbvio, portanto não é o foco principal do Choosing Wisely.
2) Terapia desconhecida quanto à sua eficácia (não há demonstração) - há tantos exemplos de condutas que fogem à plausibilidade extrema, porém são adotadas sistematicamente, baseadas em crenças. 
3) Terapia comprovadamente ineficaz, embora segura - isso também se faz, pois muitas vezes ensaios clínicos negativos não são valorizados por irem de encontro a nossas crenças. 
4) Testes diagnósticos ou prognósticos aplicados em situações inúteis (fúteis), trazendo resultados potencialmente prejudiciais (overdiagnosis).

O site do Choosing Wisely Norte-Americano traz interessantes recomendações de cada especialidade e deve ser visitados por todos com uma postura reflexiva. Esse é um pensamento de vanguarda, combatendo aquele paradigma que chamamos neste Blog de mentalidade do médico ativo. Algo muito prevalente, porém provavelmente obsoleto em 10-20 anos. Resta cada um saber que caminho escolher: um caminho reflexivo, de vanguarda ou o caminho tradicional e ultrapassado.

Em cardiologia, a companha foi muito feliz ao dizer para “não realizarmos de rotina pesquisa de isquemia miocárdica em indivíduos assintomáticos.” Percebam como (em média) o que os médicos fazem é exatamente ao contrário. Na prática, uma pessoa não pode passar nem perto do consultório cardiológico, que sairá com um pedido de exame não invasivo para pesquisa de doença coronária (teste ergométrico mais comumente, porém cintilografia miocárdica muito frequentemente e a tomografia de coronária surgindo como um método acurado e potencialmente útil, porém com risco de ser usado para promover o overdiagnosis). Por fim, o Choosing Wisely diz, "por favor, não pesquisem doença coronária no pré-operatório de cirurgia de baixo risco." Coisa de gente inteligente.

Gostamos também da recomendação de ortopedistas de não prescrever condroitina ou glucosamina (Condroflex) para tratamento de artrite de joelho. Exatamente, aquele remédio que tantos pacientes afirmam ter reduzido sua dor de joelho, porém sabemos que tudo se deve ao efeito placebo, muito bem demonstrado por um grande ensaio clínico randomizado publicado no NEJM. E ainda tem aqueles que dizem que se a dor melhora, não importa ser placebo. Mas será que devemos, de rotina, propor uma medicina baseada em fantasia? Onde podemos parar?

Certa feita, um dos líderes do Choosing Wisely nos Estados Unidos comparou essa iniciativa ao filme de Indiana Jones, onde o herói procura o Santo Graal. Na cena final, há vários cálices e apenas uma chance de escolher o cálice correto, aquele que seria o Santo Graal. O guardião dos cálices avisa aos personagens: Choose Wisely. O primeiro a escolher, de forma óbvia, escolhe o cálice mais bonito e precioso. Mas como sabemos, em ciência, nem sempre o plausível é o verdadeiro. Aquele não era o Santo Graal e o vilão se dá mal, sendo transformado em caveira. Por outro lado, Indiana Jones é um cientista, e usa sua mente científica para fazer a escolha mais sábia. Ele escolhe o cálice mais simples, mais condizente com os valores de Jesus Cristo. E acerta, conseguindo a conquista do Santo Graal. 

Como médicos, precisamos pensar sabiamente. Usar recursos sem comprovação científica ou de forma exagerada nos aproxima do vilão do filme e distancia de Indiana Jones, o nosso herói. Ser herói não é usar da mentalidade ativa, indicar procedimentos, exames, tratamentos fúteis ou incertos. Ser herói é saber quando não fazer as coisas, assumir nossas incertezas, alternando com momentos de postura mais ativa. 

* Texto escrito em colaboração de Luis Correia e Guilherme Barcellos


quinta-feira, 2 de abril de 2015

II Curso de Extensão em Bioestatística

Colegas, na primeira semana de maio faremos o II Curso de Extensão em Bioestatística, parte do Programa de Extensão da Pós-graduação da Escola Bahiana de Medicina. Este curso é aberto ao público externo, mais específico para profissionais e estudantes da área de saúde. Discutiremos como sintonizar nossa mente com o paradigma estatístico, coisa importante para a solução de problemas científicos, clínicos e porque não cotidianos. Apresentaremos os conceitos de inferência estatística, abordaremos de forma completa as análises univariadas e cálculo do tamanho amostral. Isto tudo com treinamento específico no software SPSS. 

O curso ocorrerá de forma intensiva, em uma semana, iniciando na segunda e terminando no sábado de manhã. Horário de 18h às 21h. O contato para inscrição é com Ana Paula, cujo telefone é 71-3257-8214. Vejam detalhes no cartaz abaixo. 

Espero vocês lá.