sábado, 16 de novembro de 2013

Guideline ACC/AHA sobre Colesterol: The Good, the Bad and the Ugly

Publicado esta semana, o novo Guideline dos American College of Cardiology e American Heart Association está deixando muita gente perturbada. O guideline ferve porque se afasta de condutas tipicamente recomendadas, transgredindo a monótona tradição. Independente do conteúdo apresentado, o documento já é positivo por seu aspecto transgressor, pois no mínimo provoca nossa reflexão.

Quando se fala em guidelines ou diretrizes, alguns chegam a considerar estas recomendações como a voz divina que determina o que nós (humanos) devemos fazer. Certa vez, durante uma interessante troca de ideias científicas, alguém da plateia pediu a palavra dizendo que “não podemos questionar o que está na diretriz (brasileira)”. Na verdade, um guideline deve ser criticado da mesma forma que fazemos com artigos científicos, levando-se em conta o quanto as recomendações foram de fato embasadas em evidências. Há quatro anos, em artigo do JAMARobert Califf analisou os diversos guidelines do ACC/AHA, concluindo pela necessidade de melhor embasamento científico nestes documentos. De fato, tradicionalmente os guidelines do ACC/AHA são de qualidade técnica inferior a outros modelos existentes.

Neste texto, não apresentaremos de forma didática as recomendações do guideline. Para isso, sugiro a postagem de Eduardo Lapa no Blog Cardiopapers como um ótimo resumo didático.

Faremos aqui uma análise crítica de alguns pontos relevantes do ponto de vista científico, apontando as transgressões positivas deste guideline (the good), assim como seus aspectos negativos (the bad and the ugly)


THE GOOD

Diferente do que normalmente ocorre com os guidelines do ACC/AHA, esta não é uma iniciativa exclusiva destas sociedades de cardiologia. Na verdade, é o resultado de uma parceria com o National Heart, Lung and Blood Institute (NHLBI). Recentemente, o NHLBI decidiu que não fará mais este tipo de guideline, como ocorreu no passado com as recomendações ATP III (colesterol) e o JNC (hipertensão). A partir de agora, o NHLBI passará a delegar estas funções primariamente ao ACC/AHA, porém estará junto com estes órgãos na confecção do documento. Sendo assim, este guideline ACC/AHA ganhou a chancela do NHLBI, assumindo um aspecto mais científico, típico das recomendações que possuem envolvimento governamental. O documento lembra algumas características das recomendações do US Prevention Task Force, no sentido de que o próprio grupo realiza e publica revisões sistemáticas, as quais servem de embasamento para as recomendações. Inclusive é citado na introdução de que o guideline segue o padrão de qualidade do Instituto de Medicina: Standards for Developing Trustworthy Clinical Practice Guidelines.

Abandono do Paradigma da Meta de LDL-Colesterol

Esta representa a principal mudança de paradigma, a qual está provocando certo atordoamento em quem estava acostumado a pensar da forma tradicional. O uso de metas de colesterol é um exemplo de algo que virou tradição, porém nunca foi cientificamente testado. Na verdade, nenhum ensaio clínico de prevenção primária com estatina testou a eficácia de uma conduta baseada em meta.

Vejam como se recomendava até então: se nosso cliente tem um risco Y, ele deve ter um colesterol < X mg/dl (meta). Sendo assim, se o indivíduo não estiver na meta, temos que perseguí-la, terminando quase invariavelmente no uso de estatina. Recentemente o Jornal Nacional anunciou que os cardiologistas brasileiros agora consideram que o LDL-colesterol ideal é 70 mg/dl (meta). Ou seja, se temos um paciente de alto risco, gostaríamos que ele estivesse na meta, então vamos iniciar o tratamento.  Vivemos o paradigma da meta, embora não haja evidência que dê suporte a este tipo de pensamento. 

O que os ensaios clínicos fizeram foi testar a indicação de estatina com base na característica do indivíduo (presente) e não com base no que gostaríamos que este indivíduo fosse (futuro = meta). 

Vamos pegar o primeiro estudo de prevenção primária com estatina, o WOSCOPS. Este estudo comparou estatina versus placebo em pacientes com LDL-colesterol elevado, em média 190 mg/dl. Conclusão, se o indivíduo tiver colesterol em torno deste valor, se beneficiará da estatina. Sendo assim, a decisão deve partir da característica do indivíduo. Com o passar do tempo, amostras populacionais com valores de colesterol menores do que este foram sendo testadas (AFCAPS, ASCOT …) expandindo-se a indicação para LDL-colesterol de 160 mg/dl, 130 mg/dl, …. Mas nenhum destes estudos testou meta.

Isso parece confuso, mas vejam como faz sentido quando pensamos no tratamento da hipertensão. Como decidimos em hipertensão? Se o indivíduo é hipertenso (PA  140/90 mmHg), vamos tratar sua hipertensão. Vejam que nos baseamos na característica atual do indivíduo e não em uma meta a ser alcançada. 

Quando decidimos o tratamento do colesterol baseado em meta, podemos acabar tratando um grupo de pessoas que nunca foi testado quando à eficácia do tratamento. Principalmente porque as definições de meta das recomendações anteriores são meras especulações e nos levam a tratar um grupo de pessoas que não seriam tratadas com base no pensamento adequado. Por que então não recomendar com base da prova do conceito de benefício das estatinas? 

O abandono de metas representa um ponto de convergência deste guideline com o paradigma da medicina baseada em evidências

Esta discussão tem uma segunda implicação prática: uma vez instituído o tratamento baseado na característica atual do paciente, não há sentido em perseguir uma meta com repetição periódica de exames, aumento de doses, mudanças para estatinas mais potentes ou associações com drogas cientificamente inadequadas - como é o caso do (antes sucesso de marketing) ezetimibe.

Em prevenção primária, o que os ensaios testaram foi estatina versus placebo. Se um paciente de tais características, com tal valor de colesterol, se beneficia da estatina, esta deve ser instituída. Uma vez instituída, o indivíduo desfrutará do benefício. Se o colesterol final é x ou y, isso é uma dado de menor importância. Portanto, o guideline desencoraja a repetição periódica do perfil lipídio como guia para tratamento. Mais um ponto positivo. 

Isso simplifica, democratiza o tratamento deste fator de risco, aumentando a efetividade de sua utilização. Às vezes me dá impressão de que os especialistas tentam complicar tratamentos simples, no intuito de valorizar suas competências de especialista. Tratamento do colesterol deve ser o mais simples e democrático possível, principalmente se estamos falando de um sistema coletivo de saúde. 


THE UGLY

Até que o guideline estava indo bem, quando em um determinado momento passou a seguir um curso inexplicável. Abandonar meta de colesterol fazia sentido, mas por que abandonar o valor basal do colesterol como guia para início da terapia? 

Trocando em miúdos, o guideline diz que se indivíduo for de risco intermediário com base em escores clínicos (> 7,5% de probabilidade de infarto, AVC ou morte em 10 anos), esqueça o colesterol e use estatina (exceção para o indivíduo que tiver LDL-colesterol < 70 mg/dl, aí seria demais). 

Independente de seu risco basal, não há comprovação científica de que um indivíduos com qualquer valor de LDL-colesterol deva ser tratado com estatina. A amostra testada de valores mais baixos (JUPITER) tinha o LDL médio de 105 mg/dl. Mesmo assim, este estudo tem veracidade questionável por seu caráter truncado. 

Além disso, houve uma ampliação da definição de risco intermediário, que agora passa a considerar o limite de 7,5% de risco (ao invés de 10%) e também o desfecho AVC. Isso aumenta em grande número a proporção de pessoas nesta faixa intermediária. Vale salientar que a associação de AVC e benefício da estatina é muito mais tênue que no infarto. 

Não podemos deixar de pensar que neste momento prevaleceu conflitos de interesse de especialistas (ACC/AHA) a favor das estatinas, conflitos estes apontados no próprio guideline


THE GOOD

O guideline corrigiu mais um equívoco cometido por recomendações prévias, colocando o papel de novos biomarcadores no lugar certo. Vamos pegar o exemplo do escore de cálcio coronário, o qual tem valor prognóstico incremental aos modelos preditores clínicos, como o Escore de Framinghanm. Guidelines anteriores sugeriam que se o paciente ficasse em risco intermediário pelo modelo clínico, este deveria ser submetido a um escore de cálcio para melhor definir seu risco. 

Isso nunca fez muito sentido, sendo motivo de uma postagem prévia neste Blog e de uma carta ao editor que publicamos do Journal of the American College of Cardiology. Naqueles textos, argumentávamos que o escore de cálcio não teria valor em pacientes de risco intermediário, pois estes já teriam indicação de medidas preventivas, semelhante ao paciente de risco alto. Esta nossa opinião estava em desacordo com o forte lobismo a favor dos “novos biomarcadores”, que se adotado implicaria na realização destes exames adicionais em 1/3 da população. 

Sugeríamos que o escore de cálcio fosse utilizado quando, depois da avaliação clínica, permanecesse a dúvida quanto adoção de alguma medida preventiva. Seria indicado para condições de exceção, onde haveria um dilema quanto à instituição de estatina. Neste caso, um escore de cálcio alto poderia pender mais a balança para a terapia e um escore baixo faria o contrário.

E aí vem uma boa surpresa. É exatamente isso que o guideline sugere: 

"In selected individuals for whom a decision to initiate statin therapy is otherwise unclear, additional factors may be considered to inform treatment decision making." - aqui "factors" denota os novos biomarcadores, citados na sequência do texto.



THE BAD

Quanto ao uso de novos biomarcadores, enquanto o escore de cálcio tem seu valor incremental demonstrado (estatística-C e análise de reclassificação líquida), proteína C-reativa e espessura médio-intimal de carótidas (embora preditores independentes) não possuem valor incremental aos modelos clínicos. Então, por que usar? 

De forma correta, o guideline contra-indicou o uso clínico da espessura médio-intimal de carótidas. Mas, de forma incorreta, respaldou o uso de proteína C-reativa. Essa última não entendi. Deve ter sido o lobby de Paul Ridker, detentor da patente da proteína C-reativa e que usa o estudo JUPITER para justificar o uso deste biomarcador. Naquele estudo proteína C-reativa foi critério de inclusão,  porém não houve interação entre seu valor e o benefício da estatina. 


THE GOOD, THE BAD AND THE UGLY

Neste famoso western de Sergio Leone, convivem personagens de índoles diferentes. Primeiro Blondie (the good) captura Tuko (the bad) e o entrega à justiça. Até aí Blond agia corretamente. No entanto, após receber o pagamento da justiça, Blondie resolve libertar Tuko, tornando-se seu parceiro em esquemas lucrativos. Nesta parceria, os dois desenvolvem uma relação conflituosa, com momentos de traição, indo assim até o final do filme. 

Fico imaginando que os bastidores deste guideline se assemelham à história do filme, no que diz respeito à presença dos "the good" e dos "the bad", com suas relações conflituosas. 

Essa saga justifica um documento que não se define em termos de qualidade. Por vezes parece científico e correto, outras vezes parece equivocado e tendencioso. 



THE GOOD, THE BAD AND THE UGLY: um dos melhores temas do cinema de todos os tempos, Ennio Morricone



5 comentários:

  1. Luiz, não bastasse a satisfação de ler o post as duas da madrugada, essa beleza de musica. Morricone nos salve!
    Ivana

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  2. Professor Luis,
    Esse post foi particurlamente pertinente, pois muitos de nós ainda possuimos essa visão de que o guideline é a verdade suprema. Quem não ja ouviu a frase comojustificativa de conduta: "está na diretriz" ?. Pensamos: "o guideline é elaborado por diversos especialistas no assunto que estão reproduzindo as evidecias encontradas". Contudo, esquemos que esses especialistas sao, antes de tudo, homens e como tais são passiveis de erros, influencias,lobby etc. Não podemos tomar para sí a verdade sem antes analisar criticamente os guidelines. Por isso a importancia desse blog.

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  3. Muito bom.
    Não podemos minimizar o conflito de interesse na elaboração e diretrizes que envolvem o direcionamento para gastos de valores bastante vultosos.

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  4. Olá, Luis,
    Parabéns pelo blog.
    Algumas considerações:
    1. Enquanto a MBE mantiver o uso do p fisheriano em lugar, pelo menos, dos erros tipo-I e II de Neyman e Pearson, a sua credibilidade é mínima. Isso sem falar nos sempre ausentes coeficientes de correlação, determinação e resíduos, fundamentais em regressão, ferramentas nas quais se baseiam os escores de risco (sugiro a leitura de "The Cult of Statistical Significance");
    2. Quanto ao colesterol, o primeiro passo foi dado. O próximo é esquecê-lo como fator de risco relevante ("Ignoring the Awkward", "The Great Cholesterol Con" e diversos livros do Nortin Hadler abordam a questão).
    Um abraço,
    Marcelo Derbli Schafranski

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  5. Perfeito Luis, concordo em genero, numero e grau com voce !!!! é porisso que quando recebo suas postagens, eu paro tudo o que estiver fazendo e leio na hora! Vale a pena!!
    Diante do fim das "metas", deveriamos repensar essa preferencia que vem ocorrendo pelas "high potency statins" em pacientes de risco moderado/alto.

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