sexta-feira, 26 de abril de 2013

Ensaio sobre a Medicina Baseada em Fantasia



A mente humana tem propriedades que parecem adequadas, mas que podem nos trair. Aqui me refiro ao fenômeno da mente crente, termo que reflete nossa tendência de nos excitarmos mais por afirmações do que por negações. Temos um interessante tropismo pela crença, mesmo que a idéia tenda mais para a fantasia do que para realidade. Em contraste com essa nossa tendência, o pensamento científico moderno prega o ceticismo: a crença deve depender da prova, principalmente quando estamos tomando decisões racionais.

Somos crentes por duas razões evolutivas. Primeiro, a necessidade de entender como o universo funciona. No início, quando quase nada sabíamos, tendíamos a fazer conexões causais desprovidas de lógica, em uma incessante tentativa de entender os fenômenos a nossa volta. Era compreensível que nossos ancestrais acreditassem no absurdo (p.e., a dança para atrair chuva). Em segundo lugar, havia o instinto de sobrevivência. Quando o vento balançava as árvores, era mais seguro achar que poderia ser um animal perigoso se aproximando e correr. Facilmente acreditávamos no perigo e em suas soluções fictícias.

Com a evolução científica, deveríamos ter nos tornado mais rigorosos no acreditar, porém nosso processo mental ainda guarda características primitivas. Por este motivo que acreditamos facilmente que coisas inocentes fazem mal e acreditamos que falsos tratamentos fazem bem. Assim surgem os mitos relacionados a assuntos de saúde.

Dizem que frango de granja é deletério à saúde, devido a sua grande quantidade de hormônios (o que poderia provocar câncer), gerando o culto à galinha caipira. Isso não faz sentido, pois uma dose de hormônio custa mais caro do que o frango inteiro. Na verdade, o frango de granja é maior porque é condicionado a comer mais, de forma confinada. Porém, prefere-se um frango caipira, este mais vulnerável a doenças infecciosas por ter contato livre com outros tipos de animais e por se alimentar de qualquer coisa que acha pela frente. Mesmo assim, alguns preferem pagar mais caro pelo mito.

Vejam o mito de que adoçante artificial causa câncer. Essa idéia foi negada de forma consistente por grande conjunto de estudos epidemiológicos, publicados em revistas médicas de alto impacto, demonstrando que adoçante não causa câncer, independente do tipo de produto (New Engl J Med 1980;302:537-41). No entanto, o poder de afirmações é maior do que negações, permanecendo o mito, em detrimento do conhecimento científico. Essa crença predispõe à preferência por utilizar açúcar, predispondo à obesidade, este sim um problema real.

Também adoramos atribuir falsos benefícios a coisas inertes ou maléficas.

Parece lógico pensar que vitaminas trazem benefício à nossa saúde, pois estas tem ação anti-oxidante e oxidação faz parte do mecanismo de doenças. Sendo assim, a lógica diz que o uso de vitaminas traz benefício à saúde. Essa lucrativa crença sobrevive ao longo de décadas. No entanto, todos os grandes ensaios clínicos demonstram que vitaminas não previnem câncer, nem doença cardiovascular. Não servem para nada, a não ser para dar lucro.

Acima usei o exemplo de homens acreditando que a dança influenciava na probabilidade de chuva. Isto parece absurdo, o que nos faz pensar que naquela época éramos muito mais ingênuos. Mas pensando bem: qual a diferença entre esta crença (dança-chuva) e a crença de que a posição dos astros no exato momento do nascimento de uma pessoa vai influenciar nos acontecimentos de toda uma vida? Qual o pensamento mais absurdo? Os dois exemplos me parecem desfrutar do mesmo grau de realismo fantástico, os dois representam crenças não comprovadas por trabalhos que utilizam paradigmas da metodologia científica contemporânea. Seria fácil e interessante realizar um estudo de coorte prospectiva, multicêntrico, avaliando o valor preditor de informações astrológicas. Por que será que isso não é realizado?

Esta comparação mostra que nossa mente hoje em dia aceita o absurdo de forma semelhante à mente de nossos ancestrais há milhares de anos atrás. É o fenômeno da mente crente.

Por outro lado, em relação a coisas como astrologia, há um atenuante. Neste caso, as pessoas não estão comprando astrologia achando que isto é ciência. Isto é bastante diferente de um cliente recebendo aconselhamento médico, situação na qual o coitado acredita que a conduta recomendada é algo estabelecido cientificamente. Astrologia não é algo que se compra sob a premissa de que a atividade tem comprovação científica. Está mais para religião, crença ou fé, e como diz o ditado popular, “religião não se discute”.

Por outro lado, quando falamos de atividade profissional em serviços de saúde, a coisa fica mais séria: “vender” um falso benefício ou um benefício não devidamente estudado (como se fosse algo comprovado) se aproxima da desonestidade. Ou pelo menos é ignorância do profissional que aceita presunções sem questionamento.

O maior exemplo é a homeopatia. Do ponto de vista do pensamento científico moderno, não há lógica alguma: Para curar um problema, nós precisamos administrar uma substância que cause este mesmo problema. Segunda regra, antes de administrar nós devemos diluir tanto essa substância que não sobre nenhuma molécula na solução. Desta forma, a solução (água) terá um efeito curativo e quanto mais diluído, melhor. À luz da ciência do século XXI: claro que não, isso é ridículo. Mas de onde veio uma idéia tão estranha. Dá para explicar, essa idéia foi criada pelo médico alemão Samuel Hahnemann em 1796, época em que a medicina parecia mais uma fábrica de horrores. Fazer nada muitas vezes era melhor do que as terapias propostas na época. 

Em segundo lugar, está comprovado cientificamente que homeopatia não possui efeito ativo além do placebo. Portanto, não se pode vender isso como uma conduta médica. Seria aceitável apenas se isso fosse classificado como uma atividade religiosa, espiritual. Aquele tipo de coisa que não precisa ser tratado pela ciência moderna. 

Se quiser considerar homeopatia como ato médico, esta terá que passar pelo mesmo crivo das terapias clássicas. O crivo científico, com ensaios clínicos de fase I, II e III. Do contrário, estará mais para religião ou fanatismo.

Na história médica recente, várias condutas mitológicas foram aplicadas a pacientes críticos, sendo abandonadas quando ensaios clínicos apropriados mostraram ausência de benefício ou até mesmo malefício: terapia de reposição hormonal para prevenção cardiovascular na mulher menopausada, levosimedan na ICC descompensada, Xigris no choque séptico, controle intensivo da glicemia, transfusão saguínea liberal, uso de cateter de swan-ganz, apenas para citar alguns.

Como disse o historiador Richard Gordon, “A história da medicina é, em grande parte, a substituição da ignorância por mentiras.”

O Prejuízo do Fanatismo

Pagamos um preço alto pelo fanatismo médico e esta é a razão de evitarmos este tipo de postura. Abaixo enumero os principais custos da prática não embasada em evidências.

Primeiro, podemos fazer algo maléfico sob a crença de benefício. A incerteza existe para os dois lados, por isso que a análise estatística dos trabalhos é sempre bicaudal. Quando não sabemos se algo é benéfico, não sabemos também se é maléfico. Os exemplos da terapia de reposição hormonal, do tratamento agressivo da glicemia em pacientes críticos ou da transfusão sanguínea liberal são condutas que se provaram maléficas no final das contas.

Segundo, ao focar em um tratamento complexo e inútil, desfocamos de condutas benéficas, que fariam muita diferença se fossem corretamente aplicadas. Inúmeras publicações evidenciam grandes lacunas entre a comprovação do benéfico e a correta aplicação destas condutas. Portanto, antes de adotar condutas fantásticas e não comprovadas, poderíamos nos preocupar com a qualidade assistencial. Gerenciamento de risco e adoção de protocolos sistematizados trazem a efetividade (mundo real) mais próxima da eficácia demonstrada nos ensaios clínicos.  Há razões para acreditarmos que a correta implementação do que já sabemos tem maior impacto potencial do que a invenção de novos tratamentos, os quais usualmente possuem NNT modesto.

Terceiro, um tratamento de eficácia não comprovada pode não fazer mal à saúde do paciente, mas pode causar sofrimento sem a garantia de benefício. Amigdalectomia foi realizada de forma indiscriminada na década de 70 (eu fui uma dessas crianças). Não sai sequelado, porém me lembro que não foi muito agradável o internamento, o medo que senti da cirurgia, o pós-operatório. Só valeu mesmo por alguns dias livres da escola.

Quarto, o custo financeiro. Quanto se gastou com Xigris desnecessariamente? Muitas dessas novas terapias têm alto custo, gerando grande prejuízo ao sistema de saúde.

Quinto, o prejuízo científico. É o fenômeno de medical reversal, termo que ilustra como o conhecimento científico muda a toda hora, em um vai e vem incessante, uma hora a coisa é boa, daqui a pouco já não é mais. Muito acreditam que isto ocorre porque a ciência evolui rapidamente, porém a verdade é que as idéias são criadas de forma precipitada, sem a evidência científica adequada. São verdades criadas sob alicerces tão fracos que qualquer vento que passa as derruba. 

Isso causa desorganização no processo de acúmulo do conhecimento científico, confundindo os médicos em relação à verdade científica. Embora criados sob fracos alicerces, certas coisas são tão repetidas que passam a se tornar verdade no consciente coletivo. “Uma mentira repetida muitas vezes vira verdade.” Estes mitos são tão consolidados pela repetição, que evidências científicas demonstrando falta de benefício não são suficientes para derrubar tais falsos paradigmas. Por este motivo que os médicos continuam abrindo tardiamente artérias em paciente com infartos instalados, continuam fechando forâmen oval patente, continuam fazendo angioplastias em pacientes com isquemia silenciosa, mesmo com a demonstração de que nada disso tem benefício.

Reflexão sobre a Medilândia

Reconheço que o discurso que aqui faço não é sedutor. Imaginem um profissional de educação física sendo entrevistado por Ana Maria Braga em seu programa matinal e, ao ser perguntado sobre benefícios cardiovasculares, responder que não há comprovaçãode que exercício físico previne infarto. E ainda mais, dizer que exercício físico não reduz peso, nem pressão arterial, nem colesterol, de acordo com ensaios clínicos randomizados. Na verdade, esta crença vem da ilusão criada por efeitos de confusão de estudos observacionais. Se a resposta fosse honesta e acurada, o programa perderia audiência, o profissional perderia clientes e nunca mais seria convidado para aparecer na Globo. Nada sedutor.

Porém o que temos que perceber é que a verdade não existe para ser sedutora. Por acaso, quando estamos a seduzir uma mulher (ou um homem), somos totalmente transparentes? A fantasia, esta sim, é apaixonante. Esta paixão é adequada quando estamos em lugares como Disneylândia. Por outro lado, é inadequada quando estamos no consultório médico ou à beira do leito de um paciente. Nestas situações, não podemos adotar o paradigma da Disneylândia. Não podemos adorar a medilândia.

No âmbito espiritual, a fé pode ser benéfica. Seja por efeito psicológico, seja porque de fato energias cósmicas podem vir a nos beneficiar. Sendo assim, ter fé pode ser uma boa opção e dependerá da escolha de cada um. Por outro lado, no âmbito profissional, não podemos ser fanáticos, não temos este direito.

Em algum momento, temos que fazer esta reflexão e decidirmos entre duas opções. A primeira é a opção por uma postura equilibrada, pouco emotiva, adotando condutas demonstradas cientificamente. A segunda opção é pelo fanatismo, optando por condutas médicas embasadas em fantasia. Qual destas duas opções nos parece mais adequada?

É a escolha entre medicina baseada em evidências e medicina baseada em fantasia (medilândia).