quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O Colesterol Politicamente Correto



* Artigo publicado hoje no Jornal A Tarde, por Luis Correia

Está virando politicamente correto criticar o uso de estatina (drogas redutoras de colesterol). Alguns chegam a defender a intrigante ideia de que colesterol elevado não é importante causa de infarto. Um exemplo disto é o superpopular artigo de Dráuzio Varella, “A Agonia do Colesterol”, publicado na Folha de São Paulo, neste 30 de novembro.

Penso que questionar paradigmas vigentes é sempre estimulante, nós evoluímos ao repensar ideias: colesterol elevado como causa de infarto e estatina como protetor contra infarto são mitos? São falsas ideias criadas por razões comerciais (estatinas são as drogas mais vendidas no mundo)? Esta última questão faz com que este questionamento ganhe o tom do politicamente correto. Além disso, o uso de remédios é visto como algo anti-natural; e o natural é sempre politicamente correto.

Já critiquei neste espaço o uso indiscriminado de estatina em pessoas com colesterol normal. Porém agora nos referimos a pessoas com colesterol elevado. O que propõe a medicina baseada em evidências é evitar ideias fantasiosas e adotar condutas de utilidade comprovada. Como ciência diferencia mito de realidade, faremos aqui uma revisão das evidências científicas.

A comprovação da associação epidemiológica entre colesterol e infarto data da década de 50, quando o Estudo Framigham identificou os marcadores de risco para infarto. Estes estudo utilizou metodologia científica de boa qualidade e o melhor modelo epidemológico, o desenho de coorte prospectiva. Além disso, estudos subsequentes mostraram resultados semelhantes, completando o critério de consistência entre trabalhos na confirmação de uma ideia científica. Inclusive, foi o próprio Estudo Framingham que primeiro confirmou a associação de tabagismo, hipertensão arterial e diabetes com infarto. Ao não aceitar as evidências da associação entre colesterol e infarto, estaríamos também questionando estes outros fatores de risco.

Porém, nem toda associação é causal, de fato muitas delas são casuais ou mediadas por fatores de confusão. Sendo assim, a confirmação final de que uma variável associada ao desfecho é de fato um fator causador deste desfecho está em estudos que demonstram redução na incidência do problema (infarto) quando reduzimos a causa (colesterol). Esta confirmação veio 40 anos depois, com o advento das estatinas. Ao demonstrar que a redução do colesterol com estatina (comparada a placebo) reduz a incidência de infarto, essa ligação causal ficou estabelecida por ensaios clínicos de boa qualidade metodológica, com milhares de pacientes e de resultados reprodutíveis. Sendo assim, o colesterol como fator de risco cardiovascular é um bom exemplo de um processo correto de validação científica de uma ideia. Inclusive, como a proposta do colesterol como fator de risco surgiu décadas antes do advento das estatinas, a teoria da conspiração de que o mito do colesterol foi criado para vender estatinas não ganha nem respaldo cronológico.

Ao analisar criticamente evidências, confesso que mantenho um viés de desconfiança da indústria farmacêutica, pois esta frequentemente propõe condutas lucrativas, porém não suficientemente embasadas. No entanto, precisamos reconhecer propostas que, embora lucrativas, sejam clinicamente benéficas. Estatinas reduzem risco de infarto em pessoas com colesterol elevado.

Voltando ao sedutor texto de Dráuzio, a “agonia do colesterol” é um pensamento anti-científico. Devemos usar a ciência para combater condutas fantasiosas (existem muitas por aí) e reconhecer condutas benéficas. Separar o joio do trigo requer uma análise criteriosa das evidências científcas, o que procurei fazer neste artigo, com uma liguagem coloquial.


Dráuzio fala em pensamento mágico. O que ele se esquece é que a diferenciação entre pensamento mágico e realidade é feita por ciência de boa qualidade. Não podemos priorizar o politicamente correto, em detrimento da medicina baseada em evidências. Nem sempre o politicamente correto é correto.

sábado, 16 de novembro de 2013

Guideline ACC/AHA sobre Colesterol: The Good, the Bad and the Ugly

Publicado esta semana, o novo Guideline dos American College of Cardiology e American Heart Association está deixando muita gente perturbada. O guideline ferve porque se afasta de condutas tipicamente recomendadas, transgredindo a monótona tradição. Independente do conteúdo apresentado, o documento já é positivo por seu aspecto transgressor, pois no mínimo provoca nossa reflexão.

Quando se fala em guidelines ou diretrizes, alguns chegam a considerar estas recomendações como a voz divina que determina o que nós (humanos) devemos fazer. Certa vez, durante uma interessante troca de ideias científicas, alguém da plateia pediu a palavra dizendo que “não podemos questionar o que está na diretriz (brasileira)”. Na verdade, um guideline deve ser criticado da mesma forma que fazemos com artigos científicos, levando-se em conta o quanto as recomendações foram de fato embasadas em evidências. Há quatro anos, em artigo do JAMARobert Califf analisou os diversos guidelines do ACC/AHA, concluindo pela necessidade de melhor embasamento científico nestes documentos. De fato, tradicionalmente os guidelines do ACC/AHA são de qualidade técnica inferior a outros modelos existentes.

Neste texto, não apresentaremos de forma didática as recomendações do guideline. Para isso, sugiro a postagem de Eduardo Lapa no Blog Cardiopapers como um ótimo resumo didático.

Faremos aqui uma análise crítica de alguns pontos relevantes do ponto de vista científico, apontando as transgressões positivas deste guideline (the good), assim como seus aspectos negativos (the bad and the ugly)


THE GOOD

Diferente do que normalmente ocorre com os guidelines do ACC/AHA, esta não é uma iniciativa exclusiva destas sociedades de cardiologia. Na verdade, é o resultado de uma parceria com o National Heart, Lung and Blood Institute (NHLBI). Recentemente, o NHLBI decidiu que não fará mais este tipo de guideline, como ocorreu no passado com as recomendações ATP III (colesterol) e o JNC (hipertensão). A partir de agora, o NHLBI passará a delegar estas funções primariamente ao ACC/AHA, porém estará junto com estes órgãos na confecção do documento. Sendo assim, este guideline ACC/AHA ganhou a chancela do NHLBI, assumindo um aspecto mais científico, típico das recomendações que possuem envolvimento governamental. O documento lembra algumas características das recomendações do US Prevention Task Force, no sentido de que o próprio grupo realiza e publica revisões sistemáticas, as quais servem de embasamento para as recomendações. Inclusive é citado na introdução de que o guideline segue o padrão de qualidade do Instituto de Medicina: Standards for Developing Trustworthy Clinical Practice Guidelines.

Abandono do Paradigma da Meta de LDL-Colesterol

Esta representa a principal mudança de paradigma, a qual está provocando certo atordoamento em quem estava acostumado a pensar da forma tradicional. O uso de metas de colesterol é um exemplo de algo que virou tradição, porém nunca foi cientificamente testado. Na verdade, nenhum ensaio clínico de prevenção primária com estatina testou a eficácia de uma conduta baseada em meta.

Vejam como se recomendava até então: se nosso cliente tem um risco Y, ele deve ter um colesterol < X mg/dl (meta). Sendo assim, se o indivíduo não estiver na meta, temos que perseguí-la, terminando quase invariavelmente no uso de estatina. Recentemente o Jornal Nacional anunciou que os cardiologistas brasileiros agora consideram que o LDL-colesterol ideal é 70 mg/dl (meta). Ou seja, se temos um paciente de alto risco, gostaríamos que ele estivesse na meta, então vamos iniciar o tratamento.  Vivemos o paradigma da meta, embora não haja evidência que dê suporte a este tipo de pensamento. 

O que os ensaios clínicos fizeram foi testar a indicação de estatina com base na característica do indivíduo (presente) e não com base no que gostaríamos que este indivíduo fosse (futuro = meta). 

Vamos pegar o primeiro estudo de prevenção primária com estatina, o WOSCOPS. Este estudo comparou estatina versus placebo em pacientes com LDL-colesterol elevado, em média 190 mg/dl. Conclusão, se o indivíduo tiver colesterol em torno deste valor, se beneficiará da estatina. Sendo assim, a decisão deve partir da característica do indivíduo. Com o passar do tempo, amostras populacionais com valores de colesterol menores do que este foram sendo testadas (AFCAPS, ASCOT …) expandindo-se a indicação para LDL-colesterol de 160 mg/dl, 130 mg/dl, …. Mas nenhum destes estudos testou meta.

Isso parece confuso, mas vejam como faz sentido quando pensamos no tratamento da hipertensão. Como decidimos em hipertensão? Se o indivíduo é hipertenso (PA  140/90 mmHg), vamos tratar sua hipertensão. Vejam que nos baseamos na característica atual do indivíduo e não em uma meta a ser alcançada. 

Quando decidimos o tratamento do colesterol baseado em meta, podemos acabar tratando um grupo de pessoas que nunca foi testado quando à eficácia do tratamento. Principalmente porque as definições de meta das recomendações anteriores são meras especulações e nos levam a tratar um grupo de pessoas que não seriam tratadas com base no pensamento adequado. Por que então não recomendar com base da prova do conceito de benefício das estatinas? 

O abandono de metas representa um ponto de convergência deste guideline com o paradigma da medicina baseada em evidências

Esta discussão tem uma segunda implicação prática: uma vez instituído o tratamento baseado na característica atual do paciente, não há sentido em perseguir uma meta com repetição periódica de exames, aumento de doses, mudanças para estatinas mais potentes ou associações com drogas cientificamente inadequadas - como é o caso do (antes sucesso de marketing) ezetimibe.

Em prevenção primária, o que os ensaios testaram foi estatina versus placebo. Se um paciente de tais características, com tal valor de colesterol, se beneficia da estatina, esta deve ser instituída. Uma vez instituída, o indivíduo desfrutará do benefício. Se o colesterol final é x ou y, isso é uma dado de menor importância. Portanto, o guideline desencoraja a repetição periódica do perfil lipídio como guia para tratamento. Mais um ponto positivo. 

Isso simplifica, democratiza o tratamento deste fator de risco, aumentando a efetividade de sua utilização. Às vezes me dá impressão de que os especialistas tentam complicar tratamentos simples, no intuito de valorizar suas competências de especialista. Tratamento do colesterol deve ser o mais simples e democrático possível, principalmente se estamos falando de um sistema coletivo de saúde. 


THE UGLY

Até que o guideline estava indo bem, quando em um determinado momento passou a seguir um curso inexplicável. Abandonar meta de colesterol fazia sentido, mas por que abandonar o valor basal do colesterol como guia para início da terapia? 

Trocando em miúdos, o guideline diz que se indivíduo for de risco intermediário com base em escores clínicos (> 7,5% de probabilidade de infarto, AVC ou morte em 10 anos), esqueça o colesterol e use estatina (exceção para o indivíduo que tiver LDL-colesterol < 70 mg/dl, aí seria demais). 

Independente de seu risco basal, não há comprovação científica de que um indivíduos com qualquer valor de LDL-colesterol deva ser tratado com estatina. A amostra testada de valores mais baixos (JUPITER) tinha o LDL médio de 105 mg/dl. Mesmo assim, este estudo tem veracidade questionável por seu caráter truncado. 

Além disso, houve uma ampliação da definição de risco intermediário, que agora passa a considerar o limite de 7,5% de risco (ao invés de 10%) e também o desfecho AVC. Isso aumenta em grande número a proporção de pessoas nesta faixa intermediária. Vale salientar que a associação de AVC e benefício da estatina é muito mais tênue que no infarto. 

Não podemos deixar de pensar que neste momento prevaleceu conflitos de interesse de especialistas (ACC/AHA) a favor das estatinas, conflitos estes apontados no próprio guideline


THE GOOD

O guideline corrigiu mais um equívoco cometido por recomendações prévias, colocando o papel de novos biomarcadores no lugar certo. Vamos pegar o exemplo do escore de cálcio coronário, o qual tem valor prognóstico incremental aos modelos preditores clínicos, como o Escore de Framinghanm. Guidelines anteriores sugeriam que se o paciente ficasse em risco intermediário pelo modelo clínico, este deveria ser submetido a um escore de cálcio para melhor definir seu risco. 

Isso nunca fez muito sentido, sendo motivo de uma postagem prévia neste Blog e de uma carta ao editor que publicamos do Journal of the American College of Cardiology. Naqueles textos, argumentávamos que o escore de cálcio não teria valor em pacientes de risco intermediário, pois estes já teriam indicação de medidas preventivas, semelhante ao paciente de risco alto. Esta nossa opinião estava em desacordo com o forte lobismo a favor dos “novos biomarcadores”, que se adotado implicaria na realização destes exames adicionais em 1/3 da população. 

Sugeríamos que o escore de cálcio fosse utilizado quando, depois da avaliação clínica, permanecesse a dúvida quanto adoção de alguma medida preventiva. Seria indicado para condições de exceção, onde haveria um dilema quanto à instituição de estatina. Neste caso, um escore de cálcio alto poderia pender mais a balança para a terapia e um escore baixo faria o contrário.

E aí vem uma boa surpresa. É exatamente isso que o guideline sugere: 

"In selected individuals for whom a decision to initiate statin therapy is otherwise unclear, additional factors may be considered to inform treatment decision making." - aqui "factors" denota os novos biomarcadores, citados na sequência do texto.



THE BAD

Quanto ao uso de novos biomarcadores, enquanto o escore de cálcio tem seu valor incremental demonstrado (estatística-C e análise de reclassificação líquida), proteína C-reativa e espessura médio-intimal de carótidas (embora preditores independentes) não possuem valor incremental aos modelos clínicos. Então, por que usar? 

De forma correta, o guideline contra-indicou o uso clínico da espessura médio-intimal de carótidas. Mas, de forma incorreta, respaldou o uso de proteína C-reativa. Essa última não entendi. Deve ter sido o lobby de Paul Ridker, detentor da patente da proteína C-reativa e que usa o estudo JUPITER para justificar o uso deste biomarcador. Naquele estudo proteína C-reativa foi critério de inclusão,  porém não houve interação entre seu valor e o benefício da estatina. 


THE GOOD, THE BAD AND THE UGLY

Neste famoso western de Sergio Leone, convivem personagens de índoles diferentes. Primeiro Blondie (the good) captura Tuko (the bad) e o entrega à justiça. Até aí Blond agia corretamente. No entanto, após receber o pagamento da justiça, Blondie resolve libertar Tuko, tornando-se seu parceiro em esquemas lucrativos. Nesta parceria, os dois desenvolvem uma relação conflituosa, com momentos de traição, indo assim até o final do filme. 

Fico imaginando que os bastidores deste guideline se assemelham à história do filme, no que diz respeito à presença dos "the good" e dos "the bad", com suas relações conflituosas. 

Essa saga justifica um documento que não se define em termos de qualidade. Por vezes parece científico e correto, outras vezes parece equivocado e tendencioso. 



THE GOOD, THE BAD AND THE UGLY: um dos melhores temas do cinema de todos os tempos, Ennio Morricone



sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Café Científico com Flávio Fuchs

Depois de divulgar nossa última postagem, em que analiso a falta de evidências sobre o tratamento da hipertensão leve, fiquei curioso em saber da opinião de Flávio. Sabia que ele talvez não concordasse com minha ideia, visto que sua principal linha de pesquisa é voltada para a hipótese do tratamento de pré-hipertensos. No caso dele, totalmente isento de conflito de interesses.

Desta forma, resolvi interromper seu período sabático em Harvard e puxar este interessante assunto científico. Meu email resultou em uma intensa troca de ideias científicas que varou pela madrugada de terça. Com a permissão de Flávio, compartilharei trechos desta conversa, delegando partes pessoais. Prestem atenção na profundidade científica de Flávio. Suas hipóteses são muito bem embasadas.

Comecei provocando o assunto com uma pergunta conceitual:

Flávio, de onde vem a definição de HAS como PAS de 140 ou PAD de 90 mmHg? Quanto a risco cardiovascular, há um ponto de inflexão neste valor de 140/90?

Flávio: Olá Luis, que coincidência teu e-mail. Meu filho Felipe, que acessa mais costumeiramente teu blog, mandou tua nota sobre a HAS leve, onde me citas, muito obrigado. Acho, no entanto, que estás barking to the wrong tree. Ótimo que levantaste o assunto diretamente comigo. Aquela meta-análise Cochrane se limita a poucos estudos que fizeram esta pergunta (mild hypertension) há muitos anos, estudos sem poder estatístico, pois os participantes eram saudáveis. O risco é evidentemente contínuo e começa bem embaixo, como demonstraram os autores de coortes em meta-análises poderosas. A primeira em 1990, a segunda em 1995 e a terceira, definitiva, de 2002.

Cotejando estes trabalhos é que desenhei as curvas da apresentação em anexo (foto), preparando-me para responder a pergunta que alguém me faria um dia e eis que de repente, 10 anos após, tu me fizeste!



A questão é a seguinte, o risco duplica a cada 10 de diastólica ou 20 de sistólica, começando em 115 e 75, pelo menos, talvez menos em mais jovens. As curvas exponenciais que fiz espelham o fato, dobrar valores baixos não tem quase repercussão (1 para 2, 2 para 4), mas ao se aproximar de 140 e 90 a inclinação fica evidente (16 para 32, 32 para 64, isto de risco absoluto, para qualquer denominador). Nas apresentações originais das meta-análise de 1990 e 2002 apresentam somente eixos verticais exponenciados, que retificam os riscos, a análise de 1995 é a única com riscos reais no eixo vertical, portanto gerando curvas. As coortes pequenas, como Framingham, que tem até trabalhos relativamente recentes, não perceberam este fenômeno matemático contínuo, e achando que não havia risco abaixo de 90 ou 140. Assim, hipertensão foi por muito tempo 160/95 (não tinhas nascido), 160/100 para os britânicos, depois indo para os 140/90.

Mas olha, tenho certeza substancial, o máximo que pode ter talvez um cientista que sempre trabalha com a possibilidade de sua hipótese conceitual ser refutada, de que começa mesmo em 115/75, pelo menos, este será o valor diagnóstico de hipertensão no futuro. Há abundantes evidências de risco CV em PA abaixo de 140/90, dano em órgão-alvo e a prova de conceito, veja meu artigo anexo. Depois de amanhã apresento parte disto que te disse em seminário aqui em Harvard, estou há menos de 48 horas da expulsão dos Estados Unidos, por atentado contra a ciência convencional. Grande abraço, Flávio.

Flávio,

fico orgulhoso de ser o primeiro a lhe fazer esta pergunta. Acertei em cheio, só mesmo você poderia me responder de forma tão completa. Fico convencido, há um ponto de inflexão em 140 mmHg, parece nítido! Baseado nisso, é desejável ser portador de uma pressão mais baixa possível, digamos 115/75 mmHg.

Agora vem a segunda questão: é desejável ter nascido com 115 ao invés de 130 (fato), mas isto garante que usar medicação para reduzir de 130 para 115 produz benefício? O benefício do tratamento da HAS leve é uma hipótese plausível ou um fato?

Se for apenas uma hipótese plausível, deveria ter o mesmo nível de recomendação que 160, ou deveria ser uma conduta mais individualizada de acordo com nosso paciente?

Faz sentido minha reflexão?

Flávio: Luís, bom papo para a noite aqui, aí 2:20, não dormes? Vamos por partes, como diz Jack o estripador.

Reduzir PA de 130 para 115 reduz o risco inequivocamente em quem tem doença cardiovascular, anexo outro artigo meu, já antigo, onde reviso os tradicionais trials de prevenção secundária e em stroke e em insuficiência cardíaca em que se pensava serem devidos aos tais efeitos pleiotrópicos, é tudo PA. Os benefícios apareceram ali porque o risco absoluto era grande. Falta estudo com desfecho primordial em pré-hipertensão, e não teremos, pois o risco absoluto é muito baixo, precisaria muita gente. O risco relativo é matematicamente o mesmo, anexo artigo em que discuto a pré-hipertensão, base para o PREVER prevenção, assunto que abordarei aqui quarta. E não tem curva J, o outro artigo anexado bem recente meu e de Sandra, ali rediscuto o assunto e explico o ACCORD.

Flavio, genial essa sua observação conjunta da falta de interação de hipertensão e benefício do Ramipril no HOPE. Fui no HOPE e conferi que realmente não há interação. Aí alguém poderia dizer, mas isso é efeito pleiotrópico. Daí você traz o ALLHAT negando isso. Concordo, para mim, efeito pleiotrópico é puro marketing da indústria. Vivo dizendo isso. Gostei desse argumento!!

Minha Análise Final

O maior valor de um cientista está nas perguntas que este elabora, mais do que nas respostas. Devo reconhecer que a pergunta de Flávio é brilhante e muito bem embasada: há um limite inferior para o tratamento hipotensor?

Talvez nossa diferença resida na minha opinião de que isso ainda é uma pergunta e Flávio está praticamente convencido da resposta.


Assim é que a ciência se desenvolve, do forte e intenso debate de ideias. Obrigado Flávio!

domingo, 3 de novembro de 2013

O Mito do Tratamento da Hipertensão Leve



Fato # 1: Hipertensão arterial sistêmica é o mais importante fator de risco para acidente vascular cerebral e o segundo fator de risco para infarto do miocárdio. Isso sem falar em cardiopatia hipertensiva, nefropatia hipertensiva, retinopatia hipertensiva. 

Fato # 2: O tratamento farmacológico da hipertensão previne de forma substancial estas consequências negativas. 

Questão # 1: O que é hipertensão arterial? Esta definição deve ser estatística (distribuição dos valores de pressão na população) ou deve ser baseada na implicação terapêutica da definição?

Fato # 3: Os médicos definiram que hipertensão arterial como valores ≥ 140 / 90 mmHg.

Fato # 4: Ensaios clínicos demonstram que indivíduos com pressão arterial ≥ 160/100 mmHg e múltiplos fatores de risco apresentam redução de eventos cardiovasculares quando tratados farmacologicamente. 

Mito # 1: Indivíduos com hipertensão leve (valores de pressão sistólica entre 140 e 160 mmHg ou diastólica entre 90 e 100 mmHg) devem ser tratados com medicação se  mantiverem estes níveis pressóricos a despeito de medidas não farmacológicas. 

Quando pesamos que o tratamento da hipertensão é embasado por evidências (fato), pensamos em qualquer hipertensão (mito). O que não nos damos conta é que estas evidências se limitam a indivíduos com hipertensão pelo menos moderada. Afinal, são estas que de fato provocam as devastadoras consequências citadas nas primeiras linhas desta postagem. 

Mas porque nós sempre achamos que as evidências dizem respeito a qualquer hipertensão? Não é por acaso, fomos manipulados a pensar deste jeito.

Julian Hart, pioneiro na proposta de rastreamento de hipertensão na população geral, conta que a ideia sempre foi definir 160 x 100 mmHg como os níveis diagnósticos que implicariam em tratamento. Porém, quando surgiram as primeiras evidências a respeito do benefício do tratamento neste grupo de indivíduos, a Organização Mundial de Saúde (OMS) promoveu três simpósios sobre hipertensão leve, patrocinados por três grandes laboratórios farmacêuticos. Naquele simpósio, os médicos convidados foram solicitados a endossar por escrito a proposta de que o tratamento da hipertensão deveria ser instituído a partir de 140 x 90 mmHg. A partir deste apoio dos “especialistas”, se iniciou a progressiva redução dos limites de definição do normal, culminando com o Sétimo JNC (Joint National Committee on Prevention, Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Pressure), que já define 120 x 80 mmHg como pré-hipertensão. Se 120 x 80 mmHg já não é bom, quem dirá 140 x 90 mmHg, isso deve ser devastador … Ou seja, a redução progressiva dos níveis considerados ideais garante como inquestionável o limite de 140 x 90 mmHg, prevenindo a percepção real de que  este é um limite de tratamento contrário às evidências científicas. Se pré-hipertensão (120 x 80 mmHg) é algo preocupável, quando mais hipertensão (140 x 90 mmHg). 

Mas será que há estudos que testaram terapia em paciente com hipertensão leve? Sim, porém estes são em número bem menor. Mesmo assim, precisamos saber o que eles sugerem. 

Fato # 5: Recente revisão sistemática publicada pela Cochrane Collaboration não demonstrou redução de eventos cardiovasculares com o tratamento farmacológico da hipertensão leve. 

Esta revisão identificou quatro ensaios clínicos randomizados que avaliaram indivíduos com hipertensão leve. Na verdade, os ensaios tinham também indivíduos com hipertensão moderada. Para resolver esta questão, os autores da revisão conseguiram os dados individuais dos pacientes com hipertensão leve em 3 ensaios e só incluíram estes pacientes na revisão. Um quarto ensaio foi incluído por inteiro, pois menos que 20% dos pacientes tinham hipertensão moderada.


Interpretação Científica

Em primeiro lugar, devemos nos lembrar do princípio da hipótese nula: partimos da premissa científica de ausência do fenômeno e só mudamos de ideia se este for suficientemente demonstrado. 

Assim pensa o cientista. Diferente pensa o crente, o religioso, que se embasa na fé. Só precisamos decidir que tipo de medicina queremos fazer.

Cientificamente devemos iniciar o pensamento sem preconceito, usando a  premissa de que não há demonstração de benefício do tratamento de hipertensõeszinhasEm seguida, devemos nos perguntar: há algum motivo para mudarmos de ideia (rejeitar a hipótese nula) ? 

Até agora não, pois ninguém fez um estudo especificamente dedicado a isso e o que há de evidências fala contra essa ideia. Talvez nunca façam esse estudo, pois os laboratórios não vão querer investir neste subgrupo para o qual a vendarem de droga já está garantida. Seria um gasto alto, pois menor risco = necessidade de maior tamanho amostral. É mais barato fazer uns simpósios, pagar umas passagens internacionais, e convencer os que se acham formadores de opinião (mas são meras marionetes) de que devemos tratar hipertensão leve. São estas mesmas marionetes que mais tarde se reunirão para escrever os guidelines de hipertensão. No fundo, temos que tirar o chapéu para a inteligência da indústria farmacêutica. Eles nos tiram de letra.

A oportunidade que temos de resolver esta questão será pelo financiamento de pesquisa por órgãos governamentais, tal como NIH ou CNPQ. É exatamente o que nosso amigo Flávio Fuchs está fazendo com seu ensaio clínico randomizado que testa diurético em pré-hipertensão, na ausência de conflito de interesse (Estudo PREVER). Como pergunta científica, isso tem grande valor.


A Decisão Clínica

Qual o significado do que aqui discuto em relação ao nosso comportamento no consultório ou ambulatório? Devemos negligenciar a “hipertensão leve”?

Claro que não, pois 140/90 mmHg já representa valores que não são tão habituais, por isso merecem atenção.

Mas será que devemos fazer do tratamento uma regra? Tratar com remédio todos que permanecerem hipertensos leves a despeito de medidas não farmacológicas? Hoje em dia, isso é uma regra. Inclusive uma regra contrária à medicina centrada no paciente, pois (em minha experiência) boa parte dos indivíduos "não se conformam” em ser rotulados de pessoas que precisam de medicação. Na prática, nós impomos o uso de medicação a estes pacientes, sem evidência científica que respalde esse conduta.

Devemos evitar o overdiagnosis da hipertensão leve, pela neurótica pesquisa de qualquer nível elevado de pressão arterial, com repetição de MAPAs, medidas em consultório ou valorização de picos hipertensos eventuais. Muitas vezes, na ânsia de não perder um diagnóstico, fazemos tantas medidas e exames, que acabamos concluindo de que o paciente é hipertenso quando ele tem apenas pressão próxima à imaginária linha de normalidade. 

Saber que não há comprovação de que 140/90 mmHg necessita de medicação não deve nos tornar negligentes quanto à hipertensão arterial. Porém pode e deve nos tornar menos ávidos por um diagnóstico definitivo de hipertensão leve, o que  muitas vezes implica em overtreatment de pessoas que não são exatamente hipertensas. A perseguição da alta sensibilidade em diagnosticar hipertensão reduz nossa especificidade, fazendo com que tratemos pacientes normais, piorando a qualidade de vidas destes que passam a ser hipotensos com o inapropriado tratamento. Isso não é incomum de percebermos no consultório. Vejo isso todo dia.

Esta discussão nos deixa mais a vontade para utilizarmos nosso julgamento clínico  e individualizar a decisão a respeito de tratamento na hipertensão leve. Evita a tirania do tratamento de todos. Ficamos mais livres para exercer a medicina centrada no paciente, considerando os valores e preferências destes quando estamos falando de hipertensão leve. 

Por fim, assunto aqui abordado é exemplo de verdades absolutas na mente médica, porém não embasadas em evidências. É exemplo de como a indústria cria mitos com tamanha competência. É exemplo de como podemos rever nossos paradigmas simplesmente revisando a literatura. É exemplo de que muitas vezes o paciente pode estar correto quando pergunta: Doutor, eu preciso mesmo desse medicamento?

OBS: Esta postagem não tem intenção de relaxar medidas cardiovasculares preventivas. A verdadeira intenção é calibrar a mente médica, diferenciando mito e realidade.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Medicina e Fé: há compatibilidade?

A convite do Padre Bento, debateremos a dicotomia entre Fé e Medicina com o Bispo Auxiliar de Salvador, D. Giovanni Crippa.


terça-feira, 8 de outubro de 2013

A Banalização das Doenças



* Artigo publicado hoje no Jornal A Tarde por Luis Correia


Em meados do século XX, a evolução tecnológica e científica nos trouxe tratamentos de grande relevância. Antes disso, a maioria das condutas eram empíricas e inefetivas. Fazíamos uma medicina que tentava apenas reduzir o sofrimento ou proporcionar a falsa idéia de que algo benéfico estava sendo utilizado. No início do século passado, não havia antibióticos, anti-hipertensivos, medicamentos para baixar colesterol ou marca-passos.

Esta fase foi seguida de uma grande evolução nos últimos 50 anos, tirando a medicina de um estágio medieval para uma prática efetiva e embasada em evidências. Neste contexto, o primeiro ensaio clínico publicado (British Medical Journal) data de 1948, quando se comprovou pela primeira vez que um antibiótico (estreptomicina) reduzia significativamente a mortalidade de pacientes com tuberculose, quando comparado ao tratamento limitado ao repouso. Começava a era da medicina baseada em evidências.

Por outro lado, no início do século XXI, passamos a experimentar outro fenômeno: a medicalização da população. O principal mecanismo criador da medicalização são as novas definições de doença, caracterizadas pela redução dos limites de referência do que antes considerávamos normal. É comum que a redução destes limites ocorra sem o devido embasamento científico, sendo mais motivados pelo afã de prevenir doenças, ou por conflitos de interesses. Isto faz com que, do dia para a noite, surjam populações inteiras de novos doentes, antes considerados normais.

Há alguns anos, diabetes era definido como glicemia de 140 mg/dl, depois esta definição foi reduzida para 125 mg/dl e agora já se considera que glicemia de 100 mg/dl não é normal, criando-se o conceito de pré-diabetes. Embora o conceito de pré-diabetes tenha certo valor, este tem sido inadequadamente utilizado para justificar uso de medicações, sem base científica suficiente. Temos também o advento da pré-hipertensão, rótulo que já cabe a pessoas com pressão arterial de 120 x 80 mmHg. Está cada vez mais difícil ser normal.

A primeira vista, isto pode ser interpretado como uma conduta cuidadosa, típica do paradigma preventivo de que é melhor se preocupar antes que o problema se torne uma questão mais grave. No entanto, esta conduta representa mais uma forma de overdiagnosis. Em paralelo ao afrouxamento da definição das doenças, a indústria farmacêutica realiza estudos de má qualidade, que tentam demonstrar benefício do uso de medicamentos nestas condições. Estes que mostram resultados insuficientes, que são “vendidos” de forma sedutora, levando à adoção de terapias desnecessárias. Assim surge o overtreatment.

Recentemente, o Jornal Nacional noticiou que os médicos agora consideram que o valor ideal de colesterol LDL (colesterol ruim) é 70 mg/dl. Porém, a média de LDL-colesterol na população é 120 mg/dl, sendo muito difícil que uma pessoa saudável tenha colesterol LDL de 70 mg/dl.  Desta forma, um grande número de pessoas, antes definidas como portadores de colesterol adequado, agora estão insatisfeitas com seu colesterol. Como dieta reduz apenas 5-10% e exercício não tem impacto algum, restará apenas medicação para que as pessoas tenham um ótimo colesterol. De posse dessas novas definições, se inicia o marketing simulteamente voltado para médicos e pacientes. Um marketing efetivo, pois quem não quer ter colesterol ótimo?

Tudo isso ocorre em detrimento de uma escolha conscienciosa e científica, tal como proposto pela medicina baseada em evidências. Está mais para medicina baseada em fantasia, uma lucrativa fantasia.

Por outro lado, precisamos lembrar que verdadeiros fatores de risco, como colesterol elevado, diabetes e hipertensão, não devem ser negligenciados, necessitando de tratamento na maioria das vezes com medicação. Nestes casos, existe comprovação científica de benefício.

Diagnóstico e tratamento são as ações primordiais da prática médica e devem ser feitos para quem precisa, na hora que se precisa e com criterioso embasamento científico. 

domingo, 22 de setembro de 2013

Less is More versus More is More: Estudo PRAMI



Nesta semana, o estudo PRAMI foi publicado no New England Journal of Medicine, simultâneo à apresentação de seus resultados no Congresso Europeu de Cardiologia. O resultado deste estudo muito me chamou atenção, pois vai de encontro a um quase onipresente princípio, o less is more.

O paradigma less is more prevalece na maioria das condutas médicas em que se comparou tratamento intenso versus tratamento moderado. São consistentes e repetidas as evidências de que fazer menos exames (indicar para as pessoas certas) ou evitar tratamento exagerado (glicemia, pressão arterial, transfusão) traz maior probabilidade de benefício líquido aos indivíduos. Daí a surge a aplicação da expressão menos é mais em medicina.

Em postagem antiga, demos várias exemplos de comprovação deste princípio em diferentes situações médicas.

Esta expressão foi difundida em meados no século XX pelo alemão LudwigMies van der Rohe, um dos pais da arquitetura moderna, que primava pelo estilo claro e simples, expressando o espírito da era pós-guerra, em contraposição ao estilo gótico ou barroco. Percebemos este estilo nas obras de Frank Lloyd Wright (Guggenheim) ou Oscar Niemeyer. Esta tendência surgiu na renascença, quando Leonardo da Vinci afirmou “simplicidade é a sofisticação mais requintada”. Um exemplo moderno da aplicação deste princípio estético foi o fascínio de Steve Jobs pelo less is more, criando produtos cuja estética reside principalmente em sua linearidade e simplicidade tecnológica. Há algo mais simples do que um telefone sem teclas?

Porém, é na medicina que este paradigma é verdadeiramente comprovado por evidências científicas. A editora da revista JAMA Internal Medicine, Rita Redberg, criou a série de artigos Less is More, já com 83 publicações, que envolvem as mais diferentes situações clínicas em que este paradigma se faz presente. 

Mas por que o estudo PRAMI contradiz o paradigma less is more?

O ensaio clínico PRAMI estudou pacientes submetidos a intervenção coronária primária no infarto com supradesnível do ST e que tinham outras placas provocando estenose > 50%, além da lesão culpada. Estes pacientes foram randomizados para realizar intervenção apenas da artéria culpada pelo infarto (conduta corrente, less is more) versus intervenção não só da lesão culpada, mas também das demais placas presentes (more is more). Pois bem, o PRAMI demonstrou que o more is more foi superior ao less is more na prevenção do desfecho combinado de óbito, infarto e angina refratária em seguimento de 2 anos. 

Este é o tipo de evidência capaz de mudar nosso paradigma de tratamento do infarto com supradesnível do ST. Em medicina baseada em evidências, devemos aceitar evidências de qualidade, independente de nossa crenças (less is more). Mas antes precisamos avaliar a qualidade das evidências. 

Análise Crítica da Evidência do PRAMI

Em primeiro lugar, devemos perceber que este é um ensaio clínico relativamente pequeno, apenas 465 pacientes randomizados, um número bem menor do que o normalmente visto em ensaios clínicos de fase III. Por si só, isto não invalida do trabalho, porém o deixa mais vulnerável aos efeitos de erros aleatórios ou sistemáticos.

Seguindo o check-list de nossa última postagem, o estudo passa na maioria das checagens de erros sistemáticos (vieses), porém um deles necessita melhor avaliação: vies de aferição do desfecho. O desfecho primário deste estudo é o combinado de morte cardiovascular, infarto e angina refratária. Este último é sozinho responsável por 57% dos desfechos do estudo e por ser mais subjetivo (soft), fica mais sujeito a enviesamento. 

Em um momento pontual do texto, o trabalho é descrito como single blind, indicando que apenas uma das partes, o médico ou o paciente, está cega em relação à alocação. Embora não esteja especificado qual das partes, deduzo que seja o paciente cego, sendo que o pesquisador tem conhecimento da alocação. Cegar o paciente previne que o efeito placebo corrompa este desfecho. Por outro lado, o pesquisador pode interpretar um desfecho como angina refratária ao saber que o paciente não foi plenamente revascularizado. 

O ideal em um estudo aberto seria considerar apenas desfechos hards. Porém sendo este um estudo pequeno, desfechos hards não teriam a frequência necessária para gerar um poder estatístico satisfatório. Portanto a solução deveria ser cegar o estudo e isto não foi feito plenamente.

Nota-se que os autores tiverem o “cuidado” de considerar apenas anginas que fossem refratárias. A primeira vista isso parece tornar o desfecho mais duro, porém percebam a realidade: ter angina ou não ter é algo mais objetivo do que definir se a angina é refratária ou não. Uma vez tendo angina, isto pode gerar um ajuste de droga, porém o pesquisador que sabe que ficou com lesão não abordada tende a julgar que o ajuste farmacológico não foi suficiente para o controle de seu sintoma. Isto mostra que no caso de um estudo aberto, qualificar um sintoma pode ser mais subjetivo do que simplesmente avaliar se o sintoma ocorreu ou não. Desta forma, em um estudo aberto a definição de refratária não torna o desfecho angina menos vulnerável ao viés de aferição, pode tornar até mais vulnerável. 

Da mesma forma aparentemente “cuidadosa”, os autores consideraram apenas as anginas que tinham isquemia miocárdica demonstrada por exames funcionais. Este é outro detalhe que a primeira vista sugere um desfecho mais criterioso (hard), porém faz exatamente o contrario. Claro que um paciente que tem lesão residual tem maior probabilidade de ter isquemia quando comparado ao paciente que fez abordagem de todas as suas lesões. Este critério, na verdade, gera um preconceito de que os pacientes do grupo mais conservador terão mais angina refratária. Foi incorreto utilizar um critério de imagem para definir um desfecho clínico, principalmente porque, independente do desfecho, um grupo com certeza terá mais isquemia no exame de imagem. Esta foi uma forma pré-concebida de garantir que o desfecho angina fosse mais frequente no grupo que não realizou revascularização completa. 

Por fim, precisamos falar de morte cardiovascular. Tenho dito que morte é o desfecho mais hard que existe, ninguém vai errar sua aferição. Por outro lado, morte de causa específica (cardiovascular) é um desfecho sujeito a interpretações das mais diversas: imaginem um paciente interna por infarto, realiza coronariografia, desenvolve insuficiência renal por contraste e morre - esta morte é cardiovascular ou renal? Ou um paciente interna por pneumonia, durante o curso da infecção apresenta um infarto e morre - morte cardiovascular ou infecciosa? Independente das respostas corretas, observem que há justificativa para qualquer das definições do desfecho.

Desta forma, percebam que uma “cuidadosa” definição de desfechos, aliada ao caráter aberto da observação, pode definir a priori o resultado do estudo de acordo com o interesse do investigador. Este estudo é bom exemplo disso.

Passando para a segunda parte de nosso check-list, entramos na questão do erro aleatório, proveniente do acaso. Vejam os quatro pontos a checar e adivinhem onde está a falha. 

Este é um estudo truncado!! De novo? Por que isso, interromper um estudo tão pequeno justamente no momento em que o resultado está favorável à hipótese testada? Justamente porque ao continuar o estudo, corre-se o risco do resultado (que pode ser por acaso) desaparecer. Já exemplificamos neste Blog inúmeros casos de estudos truncados (Xigris é o mais famoso, inclusive com postagem específica sobre esse tema). Como mencionamos previamente, um interessante trabalho publicado no JAMA mostrou que quando o número de desfechos é menor que 200, o risco de um resultado superestimado fica bem mais alto. Este é o caso do PRAMI.

Observem então que o PRAMI combina algumas características perigosas. Fazendo uma teoria de conspiração, é como se os autores pensassem: vamos fazer um estudo bem pequeno, ajustar os desfechos de forma a favorecer nosso interesse e quando o estudo mostrar positividade, a gente interrompe na hora, para garantir o resultado.

Implicações Práticas

O resultado do PRAMI, caso verdadeiro, mudaria um importante paradigma no tratamento do infarto. Nesta circunstância clínica, trocaria o paradigma do less is more para o more is more

Pode até ser que o resultado do PRAMI seja verdadeiro, mas não é uma garantia. O princípio científico da hipótese nula afirma que na ausência de evidência forte o suficiente, devemos permanecer com a ideia da ausência do fenômeno. Nesta discussão, não estamos afirmando que o tratamento das múltiplas angioplastias não seja benéfico. Estamos apenas chamando a atenção de que não podemos afirmar que seja benéfico. Percebam o detalhe filosófico. 

Esta mudança de paradigma promoveria aumento significativo da (já enorme) quantidade de intervenções coronárias, gerando um curso logístico e econômico ainda mais elevado do que o já existente.

Sou totalmente a favor de mudanças de paradigma, em postagem recente fiz uma apologia à transgressão, quando citei Nilton Bonder. No entanto, mudanças de paradigmas devem ser mediadas por argumentos mais fortes do que aqueles que sustentam a ideia corrente. O estudo PRAMI não tem nível suficiente para promover esta mudança.