quarta-feira, 30 de maio de 2012

Fama sem Proveito: Estudo FAME-II



Ainda não publicado, o estudo FAME-II já está servindo de argumento para os lobistas anti COURAGE Trial, aqueles de mentalidade do médico ativo, que procuram justificar revascularizações em pacientes sem indicação deste procedimento. O estudo FAME-II tem um desenho semelhante ao COURAGE, no sentido de que randomizou pacientes com doença coronária estável (sintomáticos e assintomáticos) para implante de stent + tratamento clínico otimizado versus tratamento clínico otimizado. A diferença é que a intervenção coronária foi guiada por fractional flow reserve (FFR), ou seja, tinha comprovação hemodinâmica de redução de fluxo. Digamos, uma escolha mais criteriosa de que lesões seriam tratadas.

Apos incluir 1.219 pacientes, o FAME-II foi interrompido pois “mostrou um claro benefício da estratégia intervencionista”. Aí está, mais um estudo truncado por benefício. Mais um resultado com possibilidade de ser decorrente do erro tipo I (acaso),  por de ter sido interrompido antes da hora.

Mas mesmo que não houvesse truncamento, precisaríamos discutir estes resultados mais a fundo. Devemos nos perguntar se este resultado traz algo de novo, se contraria os dados “conservadores” do COURAGE, como alguns estão argumentando.

Claro que não, é exatamente o contrário, pois o FAME-II não mostrou redução de mortalidade, nem redução de infarto – exatamente como o COURAGE. O que reduziu foi apenas incidência de hospitalização por sintomas e necessidade de revascularização. Exatamente como o COURAGE, que mostrou apenas melhora dos sintomas.

Portanto, o FAME-II confirma os dados do COURAGE.

Outro aspecto é que o desfecho revascularização do FAME-II foi definido como necessidade de revascularização urgente, conotando um tipo de desfecho aparentemente mais importante do que simplesmente revascularização. Ou seja, sugerindo que seria um desfecho instável. No entanto, não faz tanto sentido que um desfecho que caracteriza instabilidade seja reduzido, se infarto não apresentou redução. Digo, uma verdadeira necessidade de revascularização urgente significa o extremo de gravidade de pacientes com síndromes coronarianas agudas. Qual a lógica do tratamento prevenir este desfecho, se não previne infartos em geral? Precisaremos ler a definição deste desfecho no artigo a ser publicado futuramente.

Outro aspecto importante é que os dois únicos desfechos que mostraram benefício da estratégia intervencionista são susceptíveis ao viés de aferição, devido à característica aberta do estudo. Isso mesmo, o estudo não é cego, pois é difícil cegar estudos de intervenção versus tratamento clínico. Os dois desfechos (internamento por angina e revascularização) são eventos que decorrem de decisão médica. Ou seja, se internar ou ter uma revascularização indicada depende da vontade do médico. Desta forma, ao saber que seu paciente foi randomizado para não fazer intervenção coronária, o médico fica com a impressão de maior vulnerabilidade do paciente e fica mais propício a indicar internamento ou revascularização a qualquer sintoma. Daí surge uma tendência de que estes desfechos sejam mais frequentes em pacientes randomizados para o tratamento não intervencionista. Aí está uma típica combinação de desfechos moles (softs) com um estudo aberto, o que predispõe a falsos resultados.

Sendo assim, pelo caráter truncado e potencial viés de aferição, é possível que este aparente benefício seja falso. Segundo, mesmo sendo verdadeiro, este resultado está de acordo com o COURAGE: o que a intervenção faz é controlar sintomas, sem impacto sobre eventos de maior gravidade.

Porém desde já tenho ouvido argumentos utilizando este estudo contra o paradigma do estudo COURAGE. É Possível que o FAME-II se alie ao esdrúxulo subestudo nuclear do COURAGE, um dos mais citados pelos que gostam de defender o tratamento intervencionista.

Este subestudo avaliou um subgrupo de pacientes do COURAGE que fez cintilografia miocárdica antes e depois do tratamento. Mostrou que pacientes que apresentavam redução da isquemia com o tratamento (seja clínico, seja intervencionista) tiveram melhor prognóstico.

E com isso, muitos começam a sugerir que se houver isquemia, o paciente deve ser revascularizado. Qual a lógica disso?

Observem que esta análise em momento algum comparou angioplastia versus tratamento clínico, portanto não pode falar em tratamento. Pacientes que melhoram a isquemia (com qualquer tratamento) são de menor risco, menor complexidade da doença coronária, e provavelmente por isso têm melhor prognóstico. De acordo com isso, ao ajustar (análise multivariada) para as características clínicas, a significância estatística desta diferença prognóstica desapareceu totalmente. No entanto, este estudo é citado com muita frequência em encontros médicos, como uma evidência a favor da intervenção coronária. Tenho uma nítida sensação que este estudo não está sendo lido pelas pessoas, que apenas repetem o que ouvem falar ser o significado de seus resultados. Se lessem com o mínimo de atenção, chegariam a mesma conclusão que aqui exponho.

Mas podem esperar: o FAME-II vai se juntar (já está se justando) ao esdrúxulo subestudo nuclear do COURAGE, como mais uma evidência a favor da mentalidade do médico ativo.

Isto predispõe ao fenômeno descrito na língua inglesa como medical reversal. Este fenômeno é caracterizado por criarmos falsos paradigmas que em pouco tempo são revertidos por evidências científicas. E isso não é bom, pois muitas vezes estes falso paradigmas promovem condutas desnecessárias, às vezes até maléficas.

Em fase inicial está o estudo ISCHEMIA, semelhante ao COURAGE, porém limitado a pacientes com isquemia miocárdica moderada a severa. Só espero que daqui a alguns anos o ISCHEMIA não seja truncado por aparente benefício.

5 comentários:

  1. E os autores insistem em passar a idéia de um estudo positivo

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  2. O mesmo ocorreu com o O STICH trial, Janine. Recebi por e-mail, twitter e por conversa de quem recebeu por alguma das mídias socias a informação de um artigo publicado "favorável a revascularização"... Contam com a falta de tempo de quem recebe a informação para disseminar conhecimento de qualidade questionável(ou não, já que para questionar precisa do maldito tempo - e o ciclo se fecha)

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  3. Histórias reais de mais de 30 anos de atendimento médico de urgência:

    http://lembrancasmedicas.blogspot.com.br

    Se puder divulgar, eu agradeço!

    Abraço!

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  4. Parabéns pela análise. Apenas uma dúvida, o sr. falou que o FAME-II assim como o COURAGE evidenciaram apenas redução de "hospitalização por sintomas e necessidade de revascularização." Não seriam essas reduções fatores suficientes para preferir a revascularização?

    Obrigada!

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  5. Não discuto os resultados e concordo plenamente contigo. Entretanto, tenho uma crítica a estes estudos que utilizam acrônimos altamente enviesados. Se a pesquisa é sólida, por que chamá-la de "Coragem"? Isso denota um enviesamento totalmente desnecessário ao "hard data", e cria uma antagonização desnecessária. Fica aquela margem para interpretação: quem discute o resultado obtido é "covarde"? Na minha área (anestesiologia) eu vejo muitos críticos aos resultados do POISE 1 e 2 porque muitos entendem que seria uma corruptela de "poison". Ou seja, os idealizadores da pesquisa já acreditavam, mesmo antes do resultado obtido, que aqueles fármacos iniciados no pre-operatório seriam um "veneno" para o paciente. Sei que americanos ADORAM um acrônimo chamativo, mas ainda acho que isso faz mais mal que bem para o desenvolvimento científico livre de opiniões e julgamentos pré formados.

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