sábado, 26 de março de 2011

Terceiro Transplante Cardíaco Pediátrico do Instituto do Coração - DF

O Instituto do Coração do Distrito Federal é hoje a referência no Centro-Oeste para transplante cardíaco. Vejam meus amigos Jorge e Cris Afiune conversando com o novo Ministro da Saúde, durante visita ao programa de transplante.

quinta-feira, 24 de março de 2011

O Paradigma Less is More


A comunidade médica costuma propor que terapias sejam aplicadas de forma mais agressiva do que o usual, sob a premissa de que o benefício é diretamente proporcional à intensidade do tratamento. Esse é o princípio do More is More, vulgo quanto mais, melhor. Esse fenômeno é provocado pela mentalidade do médico ativo, já comentada neste Blog.

O problema é que o benefício de uma terapia agressiva em relação à mesma terapia aplicada de forma moderada é uma premissa baseada em plausibilidade biológica, que é contraposta pela também plausibilidade de que tratar mais pode trazer mais efeitos adversos, mais incovenientes, maior custo. Portanto, nada é garantido.

Mesmo assim, com frequência surgem propostas de tratamentos agressivos sem evidências científicas definitivas, baseadas apenas em fisiopatologia ou em estudos de desfechos substitutos. Um dos grandes exemplos foi a recomendação do guideline americano de hipertensão (Joint National Committee) de que a pressão arterial deveria ser reduzida de forma agressiva em diabéticos, com uma meta de pressão menor do que indivíduos não diabéticos. Depois dessa recomendação, aceita quase universalmente pelos médicos (virou rotina), foi publicado o ensaios clínico ACCORD (NEJM 2010), que randomizou grande número de diabéticos para tratamento intenso ou tratamento usual da pressão arterial, resultando em ausência de diferença entre as duas estratégias. Essa falta de benefício da redução intensa da pressão esteve aliada à necessidade de maior número de drogas utilizadas, maior incidência de efeitos colaterais e maior custo.

A magnitude do benefício de uma terapia comparada a outra terapia é sempre muito menor do que o benefício da terapia comparada ao controle. Desta forma, se tratar agressivamente tiver benefício adicional, este tenderá a ser de pequena magnitude. Isso nos permite esperar com serenidade pelas evidências científicas que mostrem ser a estratégia agressiva segura e benéfica.

Neste tipo de discussão, devemos sempre chamar a atenção de que em situações especiais pode ser justificável adotar uma conduta médica sem evidências científicas. Para que isso ocorra, umas das três condições abaixo devem ser obedecidas:

1) Plausibilidade extrema (extrema mesmo): uso de para-quedas, marca-passo no BAVT, troca valvar em disfunção grave, diálise.

2) Potencial para benefício de grande magnitude (NNT < 10): trombólise no TEP com choque.

3) Plausibilidade moderada com estudo mostrando benefício população-alvo similar: qualquer terapia cardiovascular no muito idoso (pouco incluídos em ensaios clínicos), tratamento com inibidor da ECA e beta-bloqueador em crianças com insuficiência cardíaca (não tem ensaios clínicos em crianças) ou em pacientes com miocardiopatia chagásica (não fez parte dos grandes ensaios clínicos de ICC).

Por outro lado, situações de prevenção (primária ou secundária) raramente se adequam a estas condições. Portanto, devemos esperar evidências científicas do benefício de prevenções.

Se observarmos cuidadosamente, veremos que é muito pequena a probabilidade da terapia agressiva ser superior à terapia moderada. Quase todas as vezes em que a terapia agressiva foi testada, o resultado do estudo foi negativo. Vejam abaixo:
 
1) Tratar agressivamente a pressão arterial em diabéticos não traz benefício (ACCORD - NEJM 2010).
2) Tratar agressivamente a glicemia aumenta da mortalidade hospitalar de pacientes criticamente enfermos, comparado ao tratamento usual (NICE-SUGAR - NEJM 2009).

3) Tratar agressivamente a glicemia de diabéticos crônicos não reduz desfechos clínicos e aumenta incidência da desagradável hipoglicemia (ACCORD - NEJM 2011).

4) Transfusão sanguínea liberal aumenta da mortalidade hospitalar de pacientes criticamente enfermos, comparado à transfusão restritiva (NEJM 1999).

5) Em síndromes coronarianas agudas, clopoidogrel 150 mg não é superior à dose usual de 75 mg; nem AAS 300 mg é superior a AAS 100 mg (OASIS 7 - NEJM 2010)

6) Além de tratar dislipidemia com estatina, aumentar o HDL-colesterol em 70% com Torcetrapib aumenta a mortalidade, ao invés de reduzir (ILUMINATE - NEJM 2007).

7) Além de tratar a dislipidemia com estatina, usar fibrato em diabéticos não reduz desfechos cardiovasculares (ACCORD - NEJM 2010).

8) Em síndromes coronarianas agudas, anticoagulação com Clexane em duas doses diárias é farmacologicamente mais agressivo do que uma dose diária de Fondaparinux, porém o benefício das duas terapias é igual, enquanto o Fondaparinux causa menos sangramento (OASIS 5 - NEJM 2006).

9) Angioplastia coronária de todos os vasos com obstrução significativa apresenta maior incidência de desfechos cardiovasculares do que angioplastia apenas dos vasos com redução de reserva de fluxo (FAME - NEJM 2009).

E por aí vai .... Percebam que é sempre a mesma história.

O único exemplo de sucesso do More is More é a superioridade da redução intensa do colesterol com estatina em relação ao benefício obtido com moderada dose de estatina (PROVE-IT e TNT - NEJM).
Desta forma, devemos ser cautelosos e lembrar que tratar mais nem sempre é melhor opção. É justo que estas hipóteses sejam testadas em nossa procura incessante de melhores terapias. Mas uma hipótese é para ser testada, não implementada.

No princípio do Less is More, less não significa exatamente pouco, mas sim o usual, o que se faz habitualmente. Enquanto more significa o exagero.

Por tudo isso, o princípio do Less is More deve prevalecer em nosso raciocínio clínico. Até que se prove o contrário.

domingo, 6 de março de 2011

A Síndrome Metabólica e o Rei que Estava Nu

Conta a estória de Hans Christian Andersen (1937) que um rei muito vaidoso encomendou de dois alfaiates uma roupa sem precedentes, de qualidade tão especial que nunca alguém tivesse vestido igual. Na impossibilidade de concretizar tal desejo, os alfaiates idealizaram uma roupa maravilhosa, porém invisível aos olhos de pessoas estúpidas. O próprio rei, ao experimentar a roupa, não conseguiu visualizá-la no espelho, porém fingiu que estava vendo para não parecer estúpido. Da mesma forma, todas as pessoas percebiam que o rei estava nu, porém ninguém lhe chamava a atenção pelo receio de ser rotulado de estúpido. E assim o rei passou boa parte de seu reinado nu, exposto ao ridículo. Era o medo de parecer estúpido que fazia com que as pessoas aceitassem o inverossímil. De fato, muitos acreditavam que estavam vendo a roupa, pois queriam acreditar não ser estúpidos.

Essa estória retrata o mecanismo pelo qual alguns mitos perduram na medicina. Por exemplo, o mito da síndrome metabólica como uma entidade de grande valor clínico. Na verdade, essa entidade guarda uma enorme dissociação entre sua popularidade e seu real valor clínico.

Síndrome metabólica pode ser definida como a constelação de pelo menos três dos cinco critérios: aumento de circunferência abdominal, triglicérides elevados, HDL-colesterol baixo, pressão arterial elevada e glicemia ≥ 100 mg/dl. Antes de aprofundar a análise crítica que justifica esta postagem, preciso esclarecer que do ponto de vista do desenho de estudos específicos, vejo a seguinte utilidade em agrupar alterações metabólicas decorrentes da obesidade: servir de critérios de inclusão em trabalhos que desejam avaliar mecanismos de doença ou impacto de intervenções voltadas para desfechos substitutos relacionados à obesidade. Neste contexto, há artigos e teses de qualidade, cujos valores científicos não são questionados por esta postagem.

Nosso foco é no valor da utilização da síndrome metabólica no raciocínio médico. O argumento mais utilizado para justificar a existência da síndrome metabólica é sua importância na predição do risco de eventos cardiovasculares ou do risco de desenvolvimento de diabetes. Vamos analisar, sob a ótica de evidências científicas, se síndrome metabólica realmente merece esse crédito.

O método correto para criar um modelo preditor é (1) a identificação de variáveis associadas ao desfecho em estudos de coorte, as quais serão submetidas a (2) análise multivariada que define quais são os preditores independentes do desfecho e valor relativo de cada um deles. De posse destes dados, (3) esses preditores recebem uma pontuação proporcional à sua força de associação com o desfecho, gerando um escore de risco. Assim foi criado o clássico Escore de Framingham. Em contraste, a síndrome metabólica não foi criada a partir da associação independente de cada um de seus componentes com o desfecho. Simplesmente, especialistas resolveram combinar achados clínicos que podem ter relação com resistência a insulina. Isso tem pouco a ver com predição de risco. E por este motivo, vários estudos mostram que a acurácia prognóstica do escore Framingham é nitidamente superior à da síndrome metabólica na predição de eventos cardiovasculares (Diabetes Care 2004; Diabetes Care 2005; Arch Int Med 2005). Óbvio, o Escore de Framingham nasceu de um modelo preditor de risco, enquanto SM nasceu da combinação arbitrária de achados clínicos e laboratoriais.

O grande problema da excessiva valorização da síndrome metabólica é que isso provoca certa confusão no raciocínio médico. Um exemplo é o equívoco da Diretriz Brasileira de Dislipidemia em sugerir que a presença de síndrome metabólica deve reclassificar pacientes de risco intermediário pelo Framingham para alto risco cardiovascular. Percebam, o que se sugeriu é que a presença de síndrome metabólica corrija a classificação de Framingham. Como o melhor preditor pode ser corrigido pelo pior preditor? Não pode, até mesmo porque está cientificamente demonstrado que síndrome metabólica não agrega valor prognóstico ao Escore de Framingham (Diabetes Care 2004).

Outro argumento que se usa a favor da síndrome metabólica é a predição de quem vai se tornar diabético. De fato, síndrome metabólica prediz diabetes melhor do que o Escore de Framingham. É claro, pois o Escore de Framingham não foi feito para isso. No entanto, quando se compara síndrome metabólica com modelos criados para predição de diabetes, esses últimos apresentam melhor capacidade preditora do que a síndrome metabólica (Diabetes Care 2004). Mais uma vez, isso é o esperado, pois síndrome metabólica foi criada de forma arbitrária. Então se alguém deseja predizer diabetes, que utilize um modelo multivariado validado para tal e não uma arbitrária constelação de achados metabólicos.

Interessante mesmo é perceber que (pasmem) a simples glicemia de jejum é melhor preditor de diabetes do que a definição de síndrome metabólica. Por exemplo, na coorte do estudo PROSPER (Lancet 2008), o hazard ratio da síndrome metabólica para predição de diabetes foi 4.4, comparado a 18.4 da glicemia de jejum. Esse achado se reproduz em outros estudos (J Intern Med 2008; Circulation 2005).

Então porque tanta ênfase nessa tal de síndrome metabólica? A excessiva valorização dessa síndrome vem de nossa cultura em criar rótulos de doenças. A partir destes rótulos, exames complementares, medicações e procedimentos complexos são justificados. Por exemplo, a droga anorexígena Rimonabant (já suspensa do mercado) teve seu marketing principal embasado na “cura” da síndrome metabólica. Ao receber o rótulo de síndrome metabólica, um procedimento como cirurgia bariátrica em alguém sem obesidade mórbida pode parecer mais justificável a olhos pouco científicos. Exames de pesquisa de isquemia miocárdica podem parecer mais lógicos quanto aplicados a um paciente com síndrome metabólica, mesmo que assintomático. E assim por diante. É a medicalização da sociedade, induzida por rótulos de doenças.

Voltando à estória do rei. Um belo dia, durante um importante desfile em praça pública, ao ver o rei passar com a bela roupa, uma criança gritou: o rei está nu! Essa criança desmascarou a farsa criada pelos alfaiates, constrangeu o rei, e principalmente os súditos que acreditaram na mentira ou ficaram com vergonha de discordar. Alguns interpretam que foi a inocência da criança que permitiu sua observação. Na verdade, reza a lenda que essa era uma daquelas crianças meio maliciosas. Neste caso, a diferença entre criança e adulto que prevaleceu foi a coragem de reconhecer certas verdades.