sábado, 24 de dezembro de 2011

Papai Noel Baseado em Evidências



Papai Noel existe? Essa é uma pergunta comum nesta época do ano. Considerando que este Blog se propõe a discutir a veracidade dos fatos sob o paradigma científico, precisamos abordar esta importante questão, a qual impactará na vida de milhares de famílias nas próximas horas.

Partimos inicialmente do Princípio da Hipótese Nula (Princípio 2), o qual afirma que todo fenômeno é inexistente até que se prove o contrário (prova  científica). Esta é a justificativa para eventualmente nos questionarmos sobre a existência de Papai Noel. Ou seja, duvidar de vez em quando, é natural, humano e faz parte do pensamento científico. Mas não podemos parar por aqui, temos que evoluir nosso pensamento.

Após considerar o Princípio 2, devemos evoluir e nos perguntar se a presente questão se adéqua ao Princípio 3, o da Plausibilidade Extrema. Este princípio se aplica a situações de exceção, onde o fenômeno é tão plausível, que dispensamos comprovação científica. Por exemplo, na prática clínica ter uma boa relação médico-paciente, saber ouvir e conversar com nosso cliente, representa uma habilidade que deve ser utilizada, mesmo sem um ensaio clínico randomizado demonstrando que a boa relação é benéfica. É extremamente plausível que um médico atencioso faz bem ao seu paciente e por isso aplicamos (ou devemos aplicar) essa abordagem mesmo na ausência de evidência científica.

A existência de Papai Noel é extremamente plausível. Isto porque esta existência só se materializa se formos capazes de acreditar. Se acreditarmos, Papai Noel existirá, se não acreditarmos, ele desaparecerá (ou não aparecerá). Desta forma, só nos resta aplicar o Princípio 3, pois acreditando que Papai Noel é extremamente plausível, este se tornará extremamente verdadeiro. É um perfeito exemplo do Princípio da Plausibilidade Extrema, que deve ser aplicado apenas a situações especiais, onde dispensamos o Princípio 2 (da necessidade de demonstração) e ficamos como a verdade, simplesmente porque aquela verdade é indubitável.

Há também o argumento da plausibilidade extrema do benefício em se acreditar em Papai Noel. Óbvio que esta crença faz bem para a alma, portanto devemos nutri-la. E não faz bem apenas para crianças, para adultos também.  Nós todos devemos acreditar em Papai Noel.

É tão plausível que ao imaginarmos um ensaio clínico randomizado para provar esta questão, percebemos que este seria inútil. Imaginem que vamos randomizar famílias, metade para acreditar em Papai Noel e metade para não acreditar. É óbvio que nas famílias que acreditarem, as árvores acordarão repletas de presentes, enquanto nas famílias randomizadas para não acreditar, as árvores estarão vazias, se é que nestas casas haveria árvores de natal. É tão óbvio que seria uma perda de tempo fazer esse estudo.

Poderíamos então fazer um estudo observacional. Observem como o Natal de famílias crentes é mais mágico do que o Natal de famílias descrentes.

Percebam que todo esse pensamento é baseado em uma seqüência lógica que respeita dos princípios da medicina baseada em evidências. Mas para aqueles que ainda permanecem com o Princípio da Hipótese Nula a despeito de meus argumentos, vamos fazer um teste: amanhã, ao acordar, se houver presentes na árvore, estará provado que Papai Noel passou em sua casa.

Na verdade, todo mundo acredita em Papai Noel, mesmo aqueles que fingem não acreditar.

Feliz Natal a todos.

* Esta é a postagem mais embasada em evidência de todas já escritas neste Blog.

domingo, 27 de novembro de 2011

Viés, Acaso e Demissão


Na recente postagem Ensaio sobre Conflito de Interesse, utilizei como exemplo um editorial escrito por Podermans D, o qual defendia o uso dos beta-bloqueadores em pré-operatório de cirurgia não cardíaca, exatamente quando o ensaio clínico POISE mostrou aumento da mortalidade com esta terapia. Aquele foi um exemplo especulativo, pois coincidentemente eu havia “flagrado” o mesmo médico fazendo o papel de speaker da indústria de beta-bloqueadores no congresso mundial de cardiologia.

Na semana passada, o colega Roberto Dutra me chamou atenção de uma notícia no theheart.org:

Rotterdam, the Netherlands (updated) - Erasmus Medical Center has fired Dr Don Poldermans, a well-known researcher in cardiovascular medicine, for violations of academic integrity [1]. In a statement, the hospital said that Poldermans was careless in collecting data for his research and also used fictitious data to prop up his findings.

Podermans foi demitido por um padrão inadequado de conduta científica.

Muitas vezes alunos me perguntam como a gente pode saber se um pesquisador fraudou seus dados. Minha resposta é que isso geralmente não é o caso. O que normalmente ocorre é uma tendenciosidade no desenho, condução ou interpretação do estudo, mais do que exatamente uma fraude. E dá para diagnosticar este padrão com a análise metodológica do trabalho em questão.

Vamos exemplicar com o estudo DECREASE I, publicado por Podermans et al em 1999, no prestigiado New England Journal of Medicine, artigo bastante citado pelos entusiastas do uso de beta-bloqueador em pré-operatório de cirurgia não cardíaca.

O estudo DECREASE é um prato cheio para treinamento de análise crítica. Trata-se de um ensaio clínico que randomizou 112 pacientes (candidatos a cirurgia vascular e que tinham isquemia miocárdica) para dois tipos de tratamento: usar bisoprolol (iniciado uma semana antes da cirurgia e mantido por 30 dias depois) ou não usar bisoprolol. O estudo mostrou uma impressionante redução de mortalidade cardiovascular (3.4% vs. 17%, P = 0.02) e redução de infarto (0% vs. 17%; P < 0.001). Impressionante mesmo, NNT = 7 (100/redução absoluta do risco = 100/14) para redução de morte. Sinceramente, eu nunca vi um NNT tão bom para redução de mortalidade com qualquer terapia farmacológica. Os tratamentos farmacológicos de maior impacto em cardiologia, como inibidor de ECA em ICC ou trombólise no infarto possuem NNT em torno de 20. O NNT = 7 é um achado sem precedentes.

Precisamos então analisar a veracidade deste achado. Epidemiologicamente, uma associação pode decorrer de 3 fatores: viés, acaso ou causa. Causa é quando de fato a droga está provocando redução de mortalidade. Mas antes temos que analisar as outras duas possibilidades.

Viés é um erro decorrente de falha na metodologia do trabalho. Neste estudo, existe um potencial viés de mensuração da variável desfecho: o estudo é aberto, sem utilização de placebo no grupo controle.

Usualmente desfechos duros como morte são mais resistentes ao viés de mensuração de um estudo aberto. Isto porquê morte é um desfecho tão objetivo que sofre menos de erro de interpretação. Porém devemos notar que o desfecho no estudo DECREASE I é morte cardiovascular, não morte geral. Segundo o trabalho, não houve morte não cardiovascular, todas as 9 mortes do grupo controle e as duas no grupo bisoprolol foram de origem cardiovascular. Estranho só ter morte cardiovascular. E o que é morte cardiovascular em cirurgia vascular? É morte por infarto ou morte por complicação da cirurgia vascular foi considerada? De fato, o saber que um paciente estava no grupo controle poderia ter induzido os médicos a considerar a causa da morte do paciente como cardiovascular. Ou seja, morte de uma dada origem não é desfecho tão objetivo como morte geral. De forma que ocorre aqui a interação do caráter aberto do estudo com um desfecho que não é plenamente objetivo, interação esta já mencionada previamente neste Blog. Isso representa um potencial viés de mensuração do desfecho.

Na verdade, não podemos ter certeza qual o mecanismo exato pelo qual este viés pode ter contribuído para os resultados. O fato é que temos duas situações inusitadas: um estudo aberto de apenas 112 pacientes publicado no NEJM e uma redução de mortalidade nunca antes vista com um tratamento farmacológico. Talvez tenha alguma coisa errada.

Mas não ficamos por aqui. Falamos em três possibilidades: viés, acaso e causa. Analisando agora a segunda possibilidade, acaso, percebemos outro potencial problema. Este é um estudo truncado - interrompido precocemente devido a achado favorável à droga. Inicialmente o autor planejou um tamanho amostral de 226 pacientes para lhe fornecer um poder estatístico adequado. De início, já acho esse cálculo de tamanho amostral questionável, pois foi baseado em uma premissa de altíssima incidência de desfecho (28%). Mas vamos considerar que este cálculo de tamanho amostral como adequado. Mesmo assim, não foram randomizados os 226 pacientes prometidos. O autor interrompeu o estudo com apenas metade dos pacientes randomizados, pois verificou um resultado muito bom a favor da droga. Muito bom para ser verdade.

E é exatamente este o problema de estudos truncados. Quando o tamanho amostral é muito pequeno, uma diferença muito grande entre os dois grupos é necessária para que se consiga significância estatística. Diferença tão grande que se torna inverossímil. Diferença tão grande que só pode ter decorrido do acaso. Por isto que quando o poder estatístico é insuficiente, o valor de P tende a subestimar a probabilidade do acaso. Ou seja, o acaso pode ter ocorrido, apesar do valor de P < 0.05. Este é o primeiro problema. O segundo problema é que o autor está interrompendo o estudo no melhor momento, garantindo que aquele resultado desejável não seja corrigido pelo crescimento do tamanho amostral, se de fato precisar ser corrigido. Terceiro, são várias as análises interinas, e a probabilidade do acaso aumenta pelo problema das múltiplas comparações (postagem futura abordará este problema). Desta forma, este estudo tem grande possibilidade de estar errado, não devendo servir de argumento para o uso de beta-bloqueador.

Em 2009 Podermans publicou o DECREASE IV, agora no Annals of Surgery. E fez a mesma coisa: estudo aberto e truncado. Havia sido planejado 6.000 pacientes e o cara interrompeu o estudo com apenas 1.000 pacientes! Assim, ele demonstra benefício, porém de uma magnitude muito menor (mortalidade total: 1.1% bisoprolol vs. 3.4% controle - NNT = 43) do que o impressionante benefício do DECREASE I. Isso é uma prova de que o DECREASE I era um estudo enviesado e impreciso. O DECREASE IV é menos impreciso, pois tem maior tamanho amostral, porém sofre dos mesmos problemas metodológicos.


Por outro lado, há o estudo POISE, co-patrocinado pela indústria farmacêutica e por orgãos governamentais do Canadá, Austrália e Inglaterra. Este estudo randomizou 8.000 pacientes e não demonstrou benefício do uso do beta-bloqueador. Na verdade, houve até maior incidência do desfecho primário no grupo beta-bloqueador.  Este estudo foi criticado pela forma intempestiva com que o beta-bloqueador foi utilizado, o que poderia ter sido responsável pelo resultado insatisfatório. Pode até ser, mas isso não nos autoriza a utilizar beta-bloqueador. O que nos autorizaria a usar o beta-bloqueador seria a demonstração de benefício, o que não ocorreu no estudo POISE. Benefício foi apenas demonstrado por estudos de má qualidade metodológica. 

Em 2008 foi publicada no Lancet uma meta-análise de 33 ensaios clínicos randomizados que avaliaram a questão. A conclusão foi ausência de benefício. Interessante foi a análise de sensibilidade, onde os estudos classificados como alto risco de viés sugeriam benefício e os estudos classificados como baixo risco de viés não sugeriam benefício. 

É neste momento que presenciamos uma dos maiores exemplos de violação do segundo princípio da medicina baseada em evidências (A Hipótese Nula). O recente Guideline Europeu de Pré-operatório (2009 - coordenado por Poderman) e a recente Diretriz Brasileira (2011) recomendam o uso de beta-bloqueador como Classe I, sem dados científicos suficientes para rejeitar a hipótese nula e passar a acreditar neste benefício. Lembrem-se, o que justifica uma terapia é a demonstração do benefício. A ausência de demonstração definitiva de malefício com formas mais brandas de utilização do beta-bloqueador não indica terapia nenhuma. Já o Guideline Americano atualizou sua diretriz em 2009 no intuito de retirar a indicação classe I do beta-bloqueador. Classe I foi apenas para pacientes que já vinham em uso de beta-bloqueador.

Drogas não devem ser recomendadas com base apenas em plausibilidade (Princípio 4), nem com base em estudos como os DECREASE I ou IV, nem com base na não demonstração de prejuízo se for usada de forma mais cuidadosa. Até que se prove o contrário, beta-bloqueador não é benéfico e pode até ser deletério.

Basear-se em estudos como DECREASE I e IV é um tipo de erro de pensamento médico denominado de ancoragem. Este erro ocorre quando queremos acreditar em uma hipótese (clínica ou científica) e nos ancoramos em argumentos que nunca utilizaríamos se não tivéssemos um viés a favor daquela conclusão.

Não precisávamos da notícia da demissão de Podermans para duvidar do resultado dos DECREASEs. Era só ler os estudos. Mas só agora com esta notícia que a Sociedade Européia de Cardiologia anuncia que resolveu revisar suas conclusões relativas ao Guideline de Pré-operatório de Cirurgia não Cardíaca.

domingo, 13 de novembro de 2011

Valor Diagnóstico do Escore de Cálcio Zero




Recentemente postamos uma série de artigos entitulada Análise Crítica de Métodos Diagnósticos.

Naquelas postagem discutimos detalhadamente como analisar a veracidade da informação sobre acurácia (1), magnitude da acurácia (2) e utilidade de métodos dignósticos (3,4). A intenção daquela série foi servir de guia para futuras análises da literatura, onde revisamos este conhecimento. Foi o que fizemos na análise do artigo sobre troponina de alta sensibilidade (5) e faremos agora com um artigo publicado ahead of print no Journal of the American College of Cardiology por Villines et al (Estudo CONFIRM).

O trabalho intitulado Prevalence and Severity of Coronary Artery Disease and Adverse Events Among  Symptomatic Patients With Coronary Artery Calcification Scores of Zero Undergoing Coronary Computed Tomography Angiography avalia a acurácia diagnóstica do escore de cálcio coronário na detecção de doença coronária obstrutiva em 10.000 pacientes com sintomas possivelmente anginosos, tendo angiotomografia de coronária como padrão de referência. Nesta postagem, discutiremos o significado diagnóstico destes achados.

Na discussão do trabalho, o autor afirma:

In this large, multicenter, international cohort without known CAD, clinically referred for noninvasive coronary angiography, the absence of measurable CAC significantly reduced, but did not fully exclude, the presence of obstructive CAD on current generation CCTA.

Observem que esta sentença tem uma afirmação positiva (the absence of measurable CAC significantly reduced, the presence of obstructive CAD) e outra negativa (but did not fully exclude) – ambas corretas. Mas o que deve prevalecer como mensagem final? As frases de conclusão do autor sugerem que a mensagem negativa deve prevalecer:

Conclusão do Resumo: In symptomatic patients with a CAC score of 0, obstructive CAD is possible.
Conclusão do Artigo: In symptomatic patients referred for CCTA, the absence of CAC reduces but does not fully eliminate the occurrence of obstructive CAD.

É neste ponto que discordamos.

Primeiro devemos reconhecer que a especificidade do escore de cálcio é insatisfatória, apenas 59%. Mas nossa discussão aqui será mais focada na sensibilidade, pois esta é a propriedade que interfere nas conclusões acima citadas.

Em sentido estrito, a conclusão é correta, ou seja, o escore de cálcio zero não afasta a possibilidade da presença de estenose coronária. Isto porquê a sensibilidade relatada foi 89% para estenose > 50%. Significa que 11% dos pacientes com estenose coronária não teriam este problema detectado pelo escore de cálcio.

Depois de reconhecer que o método não afasta a doença, devemos partir para uma análise mais aprofundada da acurácia. Primeiro, precisamos ter a perspectiva de que nenhum método não invasivo é capaz de afastar totalmente a presença de doença coronária. Mesmo métodos consagrados, tais como cintilografia miocárdica (sensibilidade de 87%), eco-estresse (80%) e até mesmo a angiotomografia de coronária (83%) não têm sensibilidade melhor do que a relatada aqui. Ou seja, nenhuma pesquisa não invasiva de doença coronária é determinística. Isto faz com que precisemos aplicar nesta discussão o raciocínio probabilístico, ou seja, o quanto um resultado negativo do escore de cálcio reduz a probabilidade do indivíduo ter doença obstrutiva. Este é o raciocínio que vai definir o valor da informação escore de cálcio zero.

Para saber o quanto um resultado negativo (escore zero) é capaz de reduzir a probabilidade da doença, precisamos avaliar a razão de probabilidade (RP) negativa (1-sensibilidade/especificidade). O autor fez este cálculo (1 – sensibilidade 0.89 / especificidade 0.59): RP negativa = 0.19. Este é um valor bem razoável, pois entre 0.10 e 0.20 o resultado negativo promove uma mudança moderada na probabilidade pré-teste de doença (RP negativa menor que 0.10 seria uma grande mudança).

Testes com RP negativa moderada são utéis para afastar doença em pacientes com probabilidade pré-teste até intermediária. E foi exatamente isto que aconteceu neste trabalho. A probabilidade pré-teste de doença, estimada pelos critérios de Diamond-Forrester, foi de 32% no grupo com escore negativo e 54% no grupo com escore positivo (probabilidades intermediárias). Desta forma, se o teste for negativo, vamos aplicar uma RP negativa de 0.19 a uma probabilidade pré-teste moderada. Isto é suficiente para reduzir a probabilidade de doença para valores bem baixos. É suficiente para nos deixar em uma zona de conforto. Na mesma zona de conforto que qualquer outro método não invasivo nos deixaria.

Probabilidade pós-teste é o mesmo que valor preditivo. Neste caso, os autores relatam que o valor preditivo negativo do escore de cálcio foi de 96% para afastar estenose > 50% (ou seja, sobra apenas 4% de probabilidade de doença). 

Na verdade, o escore de cálcio é um bom teste para reduzir a probabilidade de doença. Se quisermos tanta certeza para afastar a doença, apenas o cateterismo (que é definido como padrão-ouro) faria melhor. Nenhum outro método não invasivo faria melhor.

Vamos imaginar um homem de 50 anos, que dá entrada no setor de emergência com dor torácica de características intermediária. Digamos uma dor atípica, porém não atípica o suficiente para termos segurança de liberar este paciente. Eletrocardiograma normal, troponina negativa. De acordo com critérios de Diamond-Forrester, este paciente tem 22% de probabilidade pré-teste de doença obstrutiva. Se fizer um escore de cálcio zero, aplicando a RP negativa de 0.19, este indivíduo passa a ter apenas 5% de probabilidade de doença obstrutiva (como calculei? acabo de usar o Medcalc do meu Iphone – categoria evidence-based medicine – post-test probability). Assim, ele pode ser liberado.

A coisa ainda fica melhor se considerarmos os resultados do trabalho relativos a estenose > 70% como definição de doença obstrutiva. Neste caso, a sensibilidade do escore de cálcio sobe para 92%, a razão de probabilidade negativa passa para 0.15 e o valor preditivo negativo (nessa amostra de probabilidade intermediária) para 99%.

Metade dos pacientes deste estudo tiveram escore de cálcio zero. E neste caso, a probabilidade de estenose > 50% cai para 4% e > 70% cai para 1%. Então como rejeitar o valor deste método em pacientes de probabilidade baixa ou intermediária?

Um possível argumento contra a minha idéia é o de que não queremos perder a detecção destes 4% dos pacientes (ou 1% dos pacientes com placa > 70%), pois doença coronária é um problema grave. Mas então, como fazer para melhorar ainda mais a sensibilidade, o que levaria a uma melhora na RP negativa e finalmente a um valor preditivo negativo ainda melhor? Faríamos um angiotomografia de coronária?

Qual a acurácia da angiotomografia de coronária mesmo? Vamos utilizar o CORE-64, principal estudo desta área, publicado no NEJM: a sensibilidade é 83%, especificidade 91%, razão de probabilidade negativa de 0.19. Isto mesmo, 0.19, exatemente a mesma RP negativa do escore de cálcio igual a zero. Por isso, o valor preditivo negativo da angiotomografia de coronária no CORE-64 foi 81%, também não afasta a doença. Ou seja, uma vez que o resultado seja negativo, angiotomografia de coronária não é melhor que escore de cálcio coronário para afastar a doença. Se quisermos certeza mesmo da ausência de doença, deveríamos solicitar cateterismo cardíaco para todo mundo. Porém isso não faz sentido, usar o raciocínio diagnóstico probabilístico faz mais sentido, claro.

Devemos reconhecer que o resultado da angiotomografia identifica um maior número de pacientes sem a doença (especificidade). Este pode ser um argumento válido a favor da angiotomografia. Mas o argumento de que o escore de cálcio zero não afasta doença é errado, pois ele não afasta exatamente da mesma forma que a angiotomografia não afasta. 

Aí surge um novo problema do estudo em questão. Diferente dos estudos  prévios (por exemplo, Gotllieb et al, JACC 2010), o estudo que discutimos hoje não utilizou o cateterismo como padrão de referência para avaliar a acurácia do escore de cálcio. Utilizou a angiotomografia de coronária, a qual não tem melhor sensibilidade do que o escore de cálcio (apesar de ter melhor especificidade). É como uma aluno mediano corrigir a prova de outro aluno mediano (no que diz respeito à sensibilidade). Desta forma, há um problema de veracidade, relacionado à escolha do padrão de referência. Como já comentamos, este é um dos principais ítens da análise de veracidade: qualidade do padrão de referência.

Em resumo, o que precisamos entender é que nenhum método não invasivo afasta a doença coronária obstrutiva. Neste caso, o que temos que procurar é o raciocínio probabilístico e não o pensamento determinístico. O raciocínio probabilístico promove a interação do quadro clínico com o resultado de um exame, nos oferecendo uma probabilidade de doença final que nos deixa confortáveis para tomar uma decisão.

Na verdade, o artigo em questão vai ao encontro das evidências que mostram ser o escore de cálcio um método aceitável para afastar doença coronária em pacientes com probabilidade pré-teste baixa ou intermediária. Não vai de encontro, tal como tentam sugerir os autores.


* Um melhor entendimento desta discussão ocorre após revisão das série de postagens Análise Crítica de Métodos Diagnósticos.

sábado, 5 de novembro de 2011

Ensaio sobre o Pensamento Lógico - Quarto Princípio da MBE


Após ter discutido na postagem anterior os três mais básicos princípios da medicina baseada em evidências. Hoje discutiremos o quarto princípio: plausibilidade biológica não garante benefício clínico.

É função da mente humana fazer conexões lógicas de causa-efeito, um dos principais determinantes de nossa evolução intelectual. René Descartes foi o filósofo que melhor organizou o pensamento lógico e acreditava ser este suficiente para que o homem dominasse o conhecimento de todas as leis que regem o universo. Este é o paradigma científico cartesiano. Na verdade, muito antes de Descartes, desde que o homem é homem, a lógica tem sido essencial, até mesmo para nossa sobrevivência: como não sou pássaro, não devo pular do despenhadeiro, pois vou morrer.

Assim, são tão numerosos os exemplos onde a lógica é extremamente plausível, que a utilização deste tipo de pensamento se torna de grande utilidade no cotidiano. Estou muito cansado, devo dormir mais cedo hoje, mesmo que ninguém tenha feito um ensaio clínico randomizado para avaliar o efeito terapêutico do sono.

É exatamente pela grande utilidade e freqüente acurácia do pensamento lógico em suas funções mais básicas, que o homem se condicionou a utilizar tanto a lógica. O problema surge quando extrapolamos a crença no pensamento lógico das funções mais básicas para funções mais complexas. Assim como há inúmeras situações (básicas) em que a plausibilidade prevalecerá, há inúmeras situações (complexas) onde plausibilidade é diferente da realidade. E isto é muito comum quando estamos lidando com sistemas complexos, onde um desfecho é decorrência de uma multiplicidade de causas, que interagem entre si, tornando impossível prever o que acontecerá com base no pensamento cartesiano. O sistema biológico é dos mais complexos, por isto que em medicina a lógica é apenas o início da história. Pensem, por exemplo, na complexidade do sistema inflamatório, o número de tipos celulares e citocinas envolvidas do processo.

Em medicina, são inúmeros os exemplos nos quais a lógica é diferente da realidade. É só revisar um pouco as postagens deste Blog, todo dia surgem evidências frustrando hipóteses lógicas e nos lembrando deste Princípio 4.

Existe algo mais lógico do que inotrópicos positivos serem benéficos para pacientes com insuficiência cardíaca devido a disfunção sistólica do ventrículo esquerdo. Apesar da forte lógica, sabemos que potentes inotrópicos tendem a ser maléficos no longo prazo (Vernarinone) e digitálicos são apenas medicações sintomáticas, os quais não reduzem mortalidade. No outro extremo, existe algo mais lógico do que drogas inotrópicas negativas serem prejudiciais para este tipo de paciente? No entanto, há uns 15 anos se descobriu que beta-bloqueadores são altamente benéficos nesta situação, um dos mais eficazes prolongadores da vida destes pacientes. Este é um exemplo de total inversão da lógica: inotrópicos positivos maléficos e inotrópicos negativos benéficos. Hoje ninguém duvida disso, pois temos evidências científicas consistentes.

Desta forma, em medicina a palavra final não deve ser a lógica ou a plausibilidade. A lógica serve para criar hipóteses, que devem ser testadas experimentalmente antes de aplicadas na prática clínica. Até a comprovação científica, tudo fica no terreno da especulação e deve prevalecer a hipótese nula (Princípio 2). A exceção de situações de plausibilidade extrema, onde a terapia deve ser adotada de pronto, antes de qualquer evidência científica (Princípio 3). Por exemplo, uso de corticóide em certas doenças inflamatórias, uso de insulina em diabéticos tipo I, uso de diuréticos em insuficiência cardíaca.Nada disso necessita de ensaios clínicos randomizados para sabermos que a terapia é melhor que placebo. Portanto, devemos distinguir em que situações utilizar o Princípio 2 ou o Princípio 3. Mas percebam que o Princípio 3 são exceções.

Escrevendo assim parece até o mais óbvio dos pensamentos. Porém é impressionante a freqüência com que este óbvio é violado. Até inventaram o termo plausibilidade moderada, o qual serve para que cada um proponha o que quiser, baseado na sua própria lógica (na lógica do desejo). O grande problema de se basear em plausibilidade menor que extrema é a grande incerteza do quanto isto corresponde à realidade. A lógica do benefício pode terminar na adoção de uma conduta deletéria (que pensávamos ser benéfica), ou uma conduta nova que é menos benéfica do que o usual (um anti-hipertensivo novo, mais caro, da moda, mas sem evidência), ou uma conduta sem benefício (porém que gere custos, desconforto ou expectativa falsa).

Em cardiologia, um dos maiores exemplos é a lógica do desentupimento de artérias. Artigo recente no JAMA demonstrou nos Estados Unidos apenas 50% das indicações de angioplastias coronárias eletivas são consideradas apropriadas. Minha observação não científica sugere que o Brasil não é muito diferente disso (talvez até pior). Desentupimos coronárias de pacientes assintomáticos, com boa função ventricular; desentupimos coronárias ocluídas que antes irrigavam músculos hoje totalmente necrosados por um infarto transmural que ocorreu há mais de um dia. Tudo isso se faz a despeito da comprovação científica da ausência de benefício. Estes são exemplos que sofrem da tal plausibilidade moderada. Se formos analisar cuidadosamente, há forte plausibilidade para se rejeitar de pronto o benefício de uma angioplastia em uma artéria que irriga um músculo morto. Mas quando se tolera qualquer nível de plausibilidade, pensamentos mais básicos podem prevalecer sobre pensamentos mais criteriosos. Neste caso, prevalece a plausibilidade do encanador, ou seja, de desentupir o que está entupido (a lógica do desejo, o desejo de fazer a angioplastia). Este é um bom exemplo do que o oba-oba da plausibilidade promove.

Muitas vezes alunos criteriosos me perguntam se não seria antiético deixar de oferecer terapias apenas porque não há comprovação. Seria sim, na situação de plausibilidade extrema. Mas fora disso, mesmo que haja certa possibilidade da conduta ser benéfica, devemos esperar. Já pensou se começássemos a fazer tudo que tem alguma possibilidade de ser benéfico. São inúmeras (talvez infinitas) as idéias que podemos ter baseadas em plausibilidade. Faríamos todas? Seria antiético deixar de fazer alguma? Eu posso gerar a hipótese de que corticóide é benéfico nos pós-operatório de cirurgia cardíaca. Faz sentido? Se tiver uns conflitos de interesse envolvidos ou se eu for um daqueles figurões que praticam medicina baseada em eloquência, a idéia pode pegar. Assim como pegou a idéia de fazer amlodipina no pós-operatório de cirurgia cardíaca. Cirurgiões me ajudem, existem ensaios clínicos de qualidade dando suporte a esta conduta, a qual pode causar hipotensão e fechamento precoce de enxertos?

Não podemos nos dar o luxo de aceitar um sistema caótico no qual cada uma faz o que faz baseado em sua própria lógica ou na lógica de outrem. Em medicina o sistema é complexo, devemos abandonar nosso Complexo de Deus e aceitar que nossa mente não é capaz de prever o resultado exato das intervenções. Plausibilidade biológica, pensamento fisiopatológico, raciocínio farmacológico servem para se gerar idéias, para inventar novas drogas e devices. Mas estas idéias devem ser testadas cientificamente.

O paradigma cartesiano tem sua utilidade, porém em medicina o pensamento não determinístico representa um estágio evolutivo maior. Qual o estágio evolutivo que você prefere utilizar no seu cotidiano médico?

* Esta é a segunda postagem da série Os Sete Princípios da Medicina Baseada em Evidências.


quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Estudo PROTECT: Medida de BNP protege indivíduos com insuficiência cardíaca?




A figura acima foi escolhida para ilustrar a discussão que teremos em relação ao estudo PROTECT. Pretendo demonstrar porque em ciência, água mole não deve perfurar a pedra dura. Isto diz respeito à importância de desfechos duros e moles na veracidade e relevância da informação científica.

Embora ensaios clínicos randomizados sejam mais utilizados para testar eficácia de terapias, este tipo de desenho também tem sido proposto como melhor nível de evidência na validação de biomarcadores. Ou seja, biomarcadores (plasmáticos ou métodos de imagem) devem ser também eficazes, sua utilização deve beneficiar os pacientes.

No último número do Journal of the American College of Cardiology foi publicado o ensaio clínico  randomizado PROTECT, que testa a eficácia do NT-pro-BNP na condução ambulatorial de pacientes com insuficiência cardíaca. Pro-BNP é um peptídeo sintetizado pelo ventrículo quanto há estresse de parede, ou seja, descompensação da insuficiência cardíaca. O pro-BNP é quebrado em BNP (ativo) e NT-pro-BNP. Ambos podem ser medidos como marcadores de insuficiência cardíaca descompensada. As medidas destas substâncias no plasma podem servir de guia para o ajuste da dose de diuréticos e vasodilatadores, teoricamente aprimorando a qualidade do tratamento. Faz sentido.

Inicialmente me entusiasmei com a notícia deste trabalho. Primeiro porque gosto de ver ensaios clínicos randomizados sendo usados para exames diagnósticos ou prognósticos. Isso é uma evolução científica. Segundo, porque nas notícias se relatava um NNT (número necessário a tratar ou testar) de apenas 5 pacientes para prevenção de um evento cardiovascular. Um NNT raramente visto em ensaios clínicos, sugerindo grande impacto da estratégia de utilização do BNP na prática clínica.

Mas não podemos ficar com notícias de sites médicos ou de congressos. Precisamos ler os artigos na íntegra, julgando-os criticamente.

O trabalho em questão randomizou 150 pacientes para duas estratégias de condução ambulatorial: dosagens de NT-pro-BNP para ajuste da terapia versus terapia usual (sem BNP). Ao cabo de 1 ano, apenas 28% do grupo NT-pro-BNP apresentou um evento cardiovascular, comparado a 48% do grupo tratamento padrão. NNT = 100 / (redução absoluta do risco = 48 – 28) = 5. De acordo com este número, uma terapia que traz um grande benefício. Lembrem-se que o NNT < 25 para eventos combinados representa uma terapia de grande impacto.

Mas a primeira lição deste exemplo é que não devemos apenas analisar o NNT numérico, devemos analisar a qualidade dos desfechos que são utilizados para computar o NNT. Normalmente os estudos de insuficiência cardíaca utilizam reinternamento e/ou morte como desfechos. No estudo PROTECT, foi utilizado um combinado de desfechos: morte, reinternamento, síndrome coronariana aguda, arritmia, isquemia cerebral e um sexto desfecho, bastante subjetivo, definido como piora da insuficiência cardíaca (sem necessitar internamento). Este desfecho subjetivo foi responsável por metade dos eventos registrados pelo estudo, sendo o mais frequente de todos.

Neste momento, precisamos discutir a diferença de desfecho duro (hard em inglês) para desfecho mole (soft em inglês) - estes termos em português me soam estranhos, prefiro as palavras equivalentes em inglês. Um desfecho duro tem duas características: ser clinicamente relevante e ser muito objetivo, ou seja, pouco sujeito a interpretações. Percebam que morte é o desfecho mais duro que existe: grave e objetivo, não há controvérsia se houve morte ou não. Fazendo uma escala decrescente de importância dos desfechos em insuficiência cardíaca, vem em segundo lugar o reinternamento, menos grave que morte, porém bastante objetivo. Por outro lado, o desfecho piora da insuficiência cardíaca sem requerer internamento é altamente subjetivo e pouco grave. É bastante mole. E quase nunca usado em estudos deste tipo.

Esta subjetividade se torna mais problemática quando combinada com outra característica inerente deste tipo de estudo: seu caráter aberto, onde o paciente e o médico estão cientes da estratégia utilizada. Desta forma, o paciente pode se sentir mais seguro com a estratégia do NT-pro-BNP e relatar menos piora da insuficiência cardíaca, assim como o médico pode ser induzido a registrar menos este desfecho no grupo NT-pro-BNP, pela simples percepção de um paciente melhor tratado.

Ou seja, neste caso temos um viés de mensuração do desfecho, que pode promover um resultado falso. É uma combinação perigosa: um estudo aberto associado a um desfecho muito mole.

Além disso, este é um estudo truncado. Foi planejado para randomizar 300 pacientes, mas quando alcançou significância estatística, foi interrompido, com apenas 150 pacientes - aquele vício de interromper o estudo assim que a coisa fica  boa. Como já comentamos neste Blog, estudos truncados são menos precisos.

Só para comprovar que provavelmente a informação do estudo PROTECT é falsa, há um ano foi publicado na mesma revista o  ensaio clínico PRIMA, que randomizou mais que o dobro de pacientes do PROTECT, considerando apenas reinternamento como desfecho. Este estudo não demonstrou benefício da estratégia do uso de NT-pro-BNP.

Desta forma, após uma análise criteriosa, podemos afirmar que a hipótese nula (princípio 2) do NT-pro-BNP não foi rejeitada. Este estudo tem uma boa possibilidade de estar nos mostrando um resultado incorreto. E na vigência de estudos de melhor qualidade sendo negativos, o uso rotineiro do NT-pro-BNP na condução de pacientes ambulatoriais com insuficiência cardíaca não deve ser implementado.

Um detalhe. A Roche é a fabricant deste NT-pro-BNP. Veja a declaração de conflitos de interesse do PROTECT: This study was supported in part by Roche Diagnostics, Inc. Dr. Januzzi has received research grants and consultancy fees from Roche Diagnostics, Inc., Siemens Diagnostics, and Critical Diagnostics; and has received speakers fees from Roche Diagnostics, Inc. and Siemens Diagnostics.

Por outro lado, o estudo PRIMA é financiado prioritariamente por um orgão governamental e apenas segundariamente pela indústria: Main funding (€200,000) for this study was provided by the Netherlands Heart Foundation, Netherlands Organisation for Scientific Research (NWO), and the Royal Nether- lands Academy of Arts and Sciences (KNAW)–Interuniversity Cardiology Institute of the Netherlands. Minor funding of an unrestricted research grant (€70,000 per sponsor) was provided by Pfizer, AstraZeneca, Medtronic, and Roche Diagnostics.

Não sejamos ingênuos. Argumentos moles não devem ser suficientes. Em ciência, água mole não deve furar a pedra dura.

Fica o exemplo de uma perigosa combinação: um estudo aberto avaliando um desfecho mole. Pior ainda quando tudo isso é aliado a conflitos de interesse.

domingo, 16 de outubro de 2011

Princípios da Medicina Baseada em Evidências



Ao longo destes dois anos de Blog, 137 postagens, temos realizado análise de relevantes publicações científicas, utilizando conceitos de medicina baseada em evidências. Nesta postagem, descreverei os conceitos que devem nortear a formação de opinião a respeito de determinada evidência. Chamo isso dos Sete Princípios da Medicina Baseada em Evidências

Gosto de chamar de princípios, pois assim nos remetemos aos princípios humanos universais que devem (ou deveriam) nortear os indivíduos no comportamento social e pessoal. Por exemplo, ninguém discorda do princípio da honestidade. Ele simplesmente existe e em momento de decisão, idealmente deve nos influenciar. Assim deve funcionar com medicina, princípios devem nortear nossa decisão clínica baseada em evidências.

Ao contrários de princípios humanos que fazem parte do inconsciente coletivo e são intuitivos, os princípios médico-científicos são absorvidos pelo entendimento profundo do sistema biológico (sistema complexo, imprevisível) e da metodologia científica. Muitas vezes a falta de entendimento destes princípios fazem com que uma evidência científica seja encarada de forma inadaquada ou até mesmo a própria existência da medicina baseada em evidências seja interpretada de forma equivocada.

Mas porque sete princípios? Não sei, simplesmente ao organizar meu pensamento, vieram sete princípios mais importantes em minha mente. Se o número sete tem algum significado adicional, não sei. Uma rápida pesquisa no Google me lembrou que sete são as notas musicais, as cores do arco-iris, os dias da semana, os pecados capitais e ainda tem escrito que sete é o número da perfeição de acordo com a Bíblia. Interessante ...

Nesta postagem falaremos dos três primeiros princípios.

Princípio 1: O Nível de EvidênciaToda evidência deve passar por uma análise crítica, que indique qual o grau de veracidade e relevância da informação. A depender desta análise, chegamos à conclusão de que o nível de evidência é suficiente para (1) modificar nossa conduta, (2) apenas para gerar uma hipótese, ou (3) não serve para nada. Já ouvi algumas pessoas dizerem: “a maioria das evidências não é verdadeira, portanto não podemos fazer medicina baseada em evidências.” Percebam o equívoco. Medicina baseada em evidências existe exatamente para nos trazer ferramentas que resolvam esta questão, separando o joio do trigo, identificando dentre uma infinidade de publicações, quais as evidências modificadoras de conduta. A depender do objetivo do trabalho científico (avaliar eficácia de terapia, acurácia de método diagnóstico ou valor prognóstico de marcadores de risco), há diferentes aspectos a serem analisados no artigo científico, aspectos estes que procuramos descrever neste Blog. Médicos precisam desenvolver conhecimento metodológico para analisar evidências. Assim como treinamos exame clínico, precisamos treinar exame de evidências.

Assim, o termo medicina baseada em evidências na verdade quer dizer medicina baseada em evidências científicas de qualidade. Parece uma coisa óbvia, porém percebo que muitos esquecem deste princípio básico.

Princípio 2: A Hipótese Nula – Este é princípio se aplica a ciência em geral. Um fenômeno não deve ser considerado verdadeiro antes de sua demonstração. O conhecimento científico se constrói com base na demonstração da veracidade de um fenômeno. Desta forma, a premissa básica é a hipótese nula, que indica que o fenômeno não é verdadeiro. De posse desta premissa, o cientista realiza experimentos (estudos metodologicamente adequados) que se demonstrarem forte grau de evidência positiva, a hipótese nula é rejeitada e ficamos com a hipótese da existência do fenômeno (hipótese alternativa). 

Se formos refletir um pouco, perceberemos que é assim que pensamos no cotidiano. Por exemplo, a maioria não acredita em disco voador. Por que não acreditar? Porque simplesmente a hipótese nula é a premissa básica, ou seja, não existe disco voador. No dia em que alguém demonstrar um forte nível de evidência a este respeito, passaremos a acreditar. Muitos dizem que acreditam em horóscopo. Mas no fundo não acreditam, usam isso apenas como uma atividade lúdica. Digo que não acreditam pois a maioria não norteia as decisões críticas de sua vida baseada nessas coisas. na hora do vamos ver, não é ao horóscopo que as pessoas recorrem. Celular causa câncer de cérebro? A maioria das pessoas acredita que não, pois todo mundo está usando celular. Isto porque a hipótese nula deve prevalecer, até que se prove o contrário. 

Embora estes exemplos indiquem que intuitivamente norteamos nossas vidas pelo princípio da hipótese nula, paradoxalmente este princípio é violado com frequência em medicina. É a violação deste princípio que faz os médicos adotarem condutas sem evidências científica de eficácia ou segurança, o que pode prejudicar seus pacientes de diversas formas; ou prejudicar o sistema de saúde; ou distorcer a forma como o conhecimento científico deve ser acumulado. 

Com muita frequência, evidências subsequentes demonstram que aquela conduta não deveria ter sido adotada, pois não é benéfica e às vezes é até maléfica. Um grande exemplo foi a adoção da terapia de reposição hormonal na década de 90 para prevenção cardiovascular. Como não havia evidências definitivas (apenas de estudos observacionais), deveríamos ter ficado com a hipótese nula. Ensaios clínicos randomizados subsequentes indicaram exatamente o contrário, ou seja, esta terapia aumenta o risco cardiovascular. Assim ocorre com frequência quando a indústria farmacêutica convence médicos a prescreverem novas drogas baseadas apenas em evidências de desfechos substitutos. Os médicos prescrevem e depois a droga é suspensa do mercado, pois evidências subsequentes mostram que a terapia aumenta a incidência de desfechos clínicos indesejados. São tantos os exemplos, é só revisar um pouco nossas postagens.

Com procedimentos isto também é frequente. Um bom exemplo é o hábito (ou melhor, vício) de realizar angioplastia da artéria ocluída no infarto tardio. Para que abrir uma artéria que irriga um músculo já todo necrosado? Bem, isso virou hábito (ou melhor, vício), representando mais uma violação da hipótese nula. Anos depois, foi publicado o ensaio clínico OAT, desenhado para rejeitar a hipótese nula e demonstrar que a angioplastia seria benéfica. No entanto, o estudo OAT demonstrou que não há benefício deste procedimento. Porém os entusiastas continuam violando este princípio, pois ainda ouvimos o argumento de que o "OAT não é um estudo suficiente para rejeitar a hipótese de que a angioplastia é benéfica".

Percebem a inversão de valores? Na verdade, precisamos provar que algo é bom para que seja adotado, e não provar que é ruim para que não seja adotado. O ônus da prova está na existência do fenômeno.

Ouço também as pessoas afirmarem que o conhecimento médico muda muito rapidamente, e isto decorre da evolução científica. Hoje pensamos de um jeito, amanhã de outro. Em grande parte, estas mudanças decorrem do fato de que idéias pouco substanciadas são consideradas verdadeiras de forma precipitada. Estas podem ser posteriormente derrubadas por evidências. 

Princípio 3: O Paradigma do Para-quedas – este representa as exceções ao Princípio 2. Na vigência de plausibilidade extrema, devemos acreditar no fenômeno ou adotar uma conduta médica, independente de demonstração científica. Para entender o que é plausibilidade extrema, utilizamos o paradigma do para-quedas. Percebam que para-quedas representa uma conduta utilizada para reduzir a mortalidade de pessoas que pulam de uma avião. Neste caso é tão plausível que o para-quedas vai prevenir a morte, que não se realizou um ensaio clínico randomizado (para-quedas vs. placebo) para comparar o desfecho morte entre os dois grupos. Seria até anti-ético.

Em medicina, toracotomia em indivíduos baseado no tórax, drenagem de certos abcessos, marca-passo no bloqueio AV total com frequência cardíaca muito baixa, troca valvar em jovem com estenose aórtica crítica, sintomático. Estas são condutas corretamente adotadas sem ensaio clínico randomizado. 

Por outro lado, precisamos ter cuidado com a banalização deste paradigma. Percebo às vezes argumento a favor do uso de condutas, baseada em alguma plausibilidade. Não é isso, plausibilidade extrema é aquilo que se assemelha ao exemplo do para-quedas, algo que indubitavelmente deve ser feito. Algo que seria enti-ético deixar de fazer.

É um risco fazermos algo apenas beseado em plausibilidade menor que extrema. Estamos repletos de exemplos em medicina de que isto não dá muito certo. A terapia de reposição hormonal tinha uma certa plausibilidade de ser benéfica; antiarrítmicos que antes se acreditava prevenir morte súbita, depois demonstraram aumentar morte súbita; drogas inotrópicas positivas (vesnarrinone) são maléficas em pacientes com insuficiência cardíaca, apenas de parecer bom aumentar a contratilidade. E por aí vai, os exemplos são inúmeros.

Mas quando nos deparamos com plausibilidade extrema, aí não temos dúvida, devemos adotar a conduta. E esse julgamento que torna a medicina baseada em evidências interessante, pois cabe sempre ao médico dissernir em que situação ela está: plausibilidade extrema ou não?

Percebam que fica mais fácil decidir baseado em princípios do que baseado em emoção, interesses ou coisas do tipo. Na dúvida, devemos recorrer aos princípios e a conclusão parece vir naturalmente. Assim termos  norteado as postagens deste Blog.

Na postagem seguinte, apresentaremos os quatro demais princípios. Por enquanto, deixo a reflexão de que o conhecimento médico-científico deve ser construído por evidências de qualidade (Princípio 1), que sejam suficientes para rejeitar a hipótese nula (Princípio 2), exceto em situações de plausibilidade extrema (Princípio 3). 

Parece óbvio, não? Mas o problema é que o absurdo frequentemente prevalece sobre o óbvio.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Queremos realmente transformar troponina em D-dímero?



Há 1 semana foi publicado no Jounal of American College of Cardiology o artigo intitulado Rapid Exclusion of Acute Myocardial Infarction in Patients with Undetectable Troponin using a High-sensitivity Assay. A análise e interpretação dos dados por parte dos autores provoca uma interessante discussão sobre a interpretação dos componentes da acurácia e utilidade de certas propostas diagnósticas.

Nos últimos anos, a indústria tem aprimorado a capacidade dos ensaios de troponina em detectar mínimas concentrações desta proteína plasmática e com maior precisão (reprodutibilidade). Estas são as chamadas troponinas de alta sensibilidade.

Nesta coorte de 703 indivíduos com dor torácica aguda, Body R. et al demonstraram que o uso de um ensaio de troponina alta sensibilidade associado a um ponto de corte mais baixo que o habitual (qualquer nível detectável seria definido como troponina positiva) produz 100% de sensibilidade para o reconhecimento de infarto do miocárdio, levando a um valor preditivo negativo perfeito. Assim, os autores concluíram que "esta estratégia pode ser usada para reduzir as internações desnecessárias".

É exatamente esta frase que pretendo analisar sob a ótica da metodologia de avaliação de métodos diagnósticos.

Em primeiro lugar, a fim de reduzir o número de pacientes desnecessariamente internados no hospital, um teste deve ter uma melhor capacidade de reconhecer indivíduos saudáveis que podem receber alta. A capacidade de reconhecer as pessoas saudáveis é definida como especificidade. Ao reduzir o ponto de corte de qualquer teste diagnóstico, ocorre um aumento de sensibilidade, à custa de redução na especificidade.

E foi exatamente isso que aconteceu quando os autores compararam o desempenho da troponina de alta sensibilidade associada ao mínimo ponto de corte, com a referência da troponina tradicional. Houve um aumento da sensibilidade de 85% para 100%. No entanto, ocorreu também diminuição na especificidade de 82% para 34%. E uma vez que um número menor de pessoas saudáveis serão identificados, é altamente questionável se esta abordagem realmente reduz internações desnecessárias. Mesmo que diferentes pontos de corte sejam adotadas para diagnosticar e afastar infarto, uma zona cinzenta de confusão será criada, levando a uma dúvida considerável se realmente esta abordagem seria útil na prática clínica.

Desta forma, apenas 28% dos pacientes apresentaram troponina negativa. O problema é que o estudo não relatou quantos destes 28% realmente receberem alta hospitalar logo após o resultado da troponina. Destes pacientes, alguns poderiam ter dor no peito muito típica, caracterizando angina instável; alguns poderiam ter alterações isquêmicas do ECG; e outros poderiam ter outra causa grave de dor torácica que impediria a alta. Portanto, uma troponina negativa não significa necessariamente alta hospitalar. E o número real de pacientes em que o resultado ajudou na decisão de alta não está claro no artigo.

Segundo a Definição Universal de Infarto, devemos considerar o percentil 99 da troponina como o ponto de corte para este diagnóstico, o que proporciona boa acurácia diagnóstica (sensibilidade 85% e especificidade 82%, segundo o artigo de Body et al). Antes de trocar esta boa acurácia da definição universal de infarto, por uma maior sensibilidade à custa de bem menor especificidade (semelhante ao D-dímero para embolia pulmonar), evidências científicas convincentes devem ser apresentadas. Por enquanto, não está demonstrado, nem é plausível, que uma significativa redução de especificidade (detecção de saudáveis) proporcione maior liberação precoce de pacientes com dor torácica. Pelo contrário, isso poderá provocar maior número de internamentos desnecessários.

O D-dímero é um teste que  intrinsecamente não tem especificidade. Não há outra alternativa, ele só pode nos oferecer sensibilidade. Mas a troponina é diferente. Este teste tem tanto sensibilidade como especificidade. Não parece fazer tanto sentido transformar a troponina em D-dímero.

Talvez faça sentido para a indústria da troponina de alta sensibilidade. É a briga intensa pelo mercado de dosagens bioquímicas.  

Cuidado com algo muito sensível, pode ser pouco específico. Cuidado com algo muito específico, pode ser pouco sensível. Nem sempre vale a pena trocar o equilíbrio da sensibilidade e especificidade (crossover no gráfico acima), pela priorização de alguma destas propriedades.

* Esta é mais uma postagem da séria Análise Crítica de Evidências Diagnósticas.
* Uma versão modificada destes artigo foi aceita para publicação no Journal of the American  College of Cardiology (in press).

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Ensaio sobre Conflitos de Interesse




De acordo com a enciclopédia Wikipedia, conflito de interesse é um termo que se aplica quando um indivíduo (ou organização) tem envolvimento com múltiplos interesses, de forma que um interesse pode corromper a motivação pelo outro interesse.

Conflito de interesse é um fenômeno intrínseco na natureza, todos nós lidamos com isso, a toda hora. Alguém pode ter interesse em perder peso, porém ao mesmo tempo tem interesse em se divertir tomando um sorvete. Claro que o interesse na diversão vai prejudicar a meta de perda de peso.

O conflito de interesse começa a se tornar algo mais sério quando envolve situações profissionais. Recentemente Palocci perdeu seu cargo de Ministro da Casa Civil, pois seu forte envolvimento prévio (no sentido monetário) com empresas privadas poderia influenciar suas ações públicas em prol destas empresas. Um advogado não pode representar a pessoa A contra a pessoa B, se em outro processo o mesmo advogado representa a pessoa B contra outra pessoa C.  Se o segundo processo for maior que o primeiro, a pessoa A pode ser mal representada para que B seja favorecido.

Em ciência não poderia ser diferente, conflitos de interesse permeiam diversas relações. Aqui o primeiro interessado é a verdade científica. O problema é que diversas vezes a verdade científica é enviesada devido a outros interesses dos cientistas ou dos formadores de opinião. É o conflito da verdade científica versus interesses pessoais.

Há diversos níveis de conflitos de interesse, vamos analisar de um extremo a outro.

No extremo superior, estão aqueles formadores de opinião que recebem verba para dar palestas em eventos organizados pela indústria farmacêutica (ou de equipamentos) ou escrever boletins informativos em nome da indústria. Nesta situação, é grande a probabilidade de viés (consciente ou inconsciente) na forma como as coisas são colocadas. Por outro lado, não vejo grande problema, pois a intenção do evento ou boletim está explícita, é fazer propaganda. E fazer propaganda não é pecado, principalmente no mundo capitalista. Nesta situação, cabe aos ouvintes ou leitores julgar criticamente as informações, separando o que concordamos ou discordamos. Ou simplesmente fazer o mesmo que fazemos com propaganda política: desligamos a televisão ou mudamos para o canal da TV fechada. Na prática, significa não se vender por um jantarzinho da indústria. Ficar em casa estudando pode ser uma idéia bem melhor. Ou, automaticamente jogar fora aqueles encartes que os representantes distribuem. Melhor ainda jogar em lixo reciclável.

Assim, resolvemos esta situação. Inclusive, devo salientar que este tipo de conflito de interesse de formadores de opinião não pode ser considerado um problema ético, pois o conflito é declarado. É algo que faz parte do nosso mundo capitalista. Simplesmente é assim.

O problema é quando vamos nos distanciando deste extremo e as coisas começam a ficar menos claras. Por exemplo, o mesmo palestrante do evento da indústria pode ser convidado por um evento de sociedade médica para falar de um assunto semelhante. Nestas situações, os palestrantes devem declarar conflitos antes da aula. Porém, mesmo que o façam, é difícil definir o grau de influência que o conflito pode estar tendo no palestrante.

Pior é quando se trata de editoriais escritos por indivíduos de referência em revistas científicas de respeito. Há alguns anos, foi publicado o ensaio clínico POISE no Lancet, demonstrando que o uso de beta-bloqueador iniciado em pré-operatório de cirurgia não cardíaca aumenta mortalidade. No entanto, o editorial que acompanhou o artigo, escrito por Poldermans D, defendia a manutenção da prática do beta-bloqueador. Isso mesmo, sem nem mesmo propor um outro estudo que utilizasse uma abordagem diferente de uso de beta-bloqueador, o editorialista sugere que se continue usando, desde que de forma mais cuidadosa. Dias depois fui ao Congresso Mundial de Cardiologia em Buenos Aires. Estava sem alternativa para almoçar e aí resolvi pegar uma daquelas caixinhas de comida de simpósio satélite. Quando entrei na sala para pegar o lanche (reconheço, foi um conflito de interesse, mas eu estava com fome), percebi que ali estava ele, o mesmo Polderman D, falando em um simpósio satélite sobre uso de beta-bloqueador em cirurgia não cardíaca. Não resisti, fiz uma pergunta bastante provocativa, o que o irritou bastante. Percebo que a irritação do speaker é um sinal de que ele não está plenamente confortável naquele papel.

Há alguns anos foi publicado um editorial favorável ao uso de Levosimedan nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, por um autor suíço. Naquela época o ensaio clínico Survive já havia sido publicado, demonstrando ausência de benefício desta droga em pacientes com insuficiência cardíaca descompensada. Como reação a este editorial fora de contexto, Flávio Fuchs enviou carta ao editor, chamando atenção sobre as afirmações não embasadas em evidências e mostrando que o autor do editorial havia omitido seus conflitos de interesse na publicação do estudo.

Sem querer dar uma de puritano, devemos reconhecer que conflitos de interesse fazem parte de todas as facetas da vida. Cabe a nós sabermos nos proteger. Mas como? Desenvolvendo um senso crítico e aprimorando nossa capacidade de julgamento da literatura médica, pelas técnicas da medicina baseada em evidências.

Finalmente, lhes convido a assistir a brilhante conferência (5 minutos) do psicólogo americano Dan Airely sobre conflitos de interesse, apresentada durante o evento anual TED, na Califórnia.