terça-feira, 16 de março de 2010

O Ótimo é Inimigo do Bom

O ótimo é inimigo do bom. Esta é a principal mensagem dos estudos ACCORD e RACE II, que demonstraram ser o controle moderado da pressão arterial suficiente, mais fácil e seguro (bom), do que tentar controlar excessivamente a pressão arterial (ótimo) no diabético - ACCORD; o mesmo aconteceu com o controle moderado da freqüência cardíaca na fibrilação atrial permanente (bom), em relação ao controle mais estrito da freqüência (ótimo) – RACE II. Nem sempre o que parece ser uma estratégia mais rigorosa (ótimo) representa uma vantagem terapêutica.

Lembrado isso, precisamos detalhar um pouco mais estes trabalhos.

O estudo ACCORD não mostrou benefício no desfecho primário, que foi definido como o combinado de morte cardiovascular, infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral. Porém se analisado o objetivo secundário de AVC isoladamente, observa-se que há uma redução neste desfecho, a qual alcança significância estatística. Então, como interpretar este estudo: negativo ou positivo? A interpretação deve ser baseada no objetivo primário, para o qual o estudo foi dimensionado. Nunca o resultado de um desfecho secundário deve prevalecer sobre o desfecho primário. Como já comentamos neste Blog, o estudo não é dimensionado para uma diferença no objetivo secundário. Portanto, se esta diferença é observada, a probabilidade do acaso é maior do que o expressado pelo valor de P. Neste caso, existe o problema dos múltiplos testes, ou seja, há vários objetivos secundários, o que aumenta a probabilidade de um deles aparecer significativo por acaso. Portanto, o estudo é negativo.

Desfecho secundário serve para avaliar se um benefício observado no desfecho primário é resultado do benefício em todos os desfechos individuais. Ou para gerar hipóteses, que devem avaliar ser testadas em estudos dimensionados para tal. Finalmente, mesmo se fosse um efeito verdadeiro, o NNT para prevenir o AVC seria de 89 em 8 anos, um benefício de pequena magnitude.

Então, o achado relativo ao risco de AVC não deve nos influenciar no tratamento anti-hipertensivo. Ficamos com a meta de pressão abaixo de 140 mmHg. Isso não quer dizer que precisamos reduzir as drogas se o indivíduo ficar com pressão menor que 120 mmHg após um esquema terapêutico inicial. Mas se a pressão estiver em 135 mmHg, não precisamos associar mais drogas.

No diabético com disfunção renal, esta ainda é uma questão em aberto, pois estes pacientes foram excluídos. Talvez diabéticos de maior risco se beneficicem. Mas isso precisa ser demonstrado. Há outro estudo que está sendo desenhado pelo NIH para avaliar esta questão em diabéticos de alto risco. Mas só teremos este resultado daqui a uns 10 anos.

Quanto ao controle estrito versus liberal da freqüência cardíaca em pacientes com fibrilação atrial permanente (RACE II), devemos lembrar que este estudo não incluiu pacientes com insuficiência cardíaca descompensada. O que nos faz pensar que se estivermos com um paciente cuja freqüência de 105 bpm e insuficiência cardíaca aguda, pode ser útil controlar melhor a freqüência. A insuficiência cardíaca pode ser decorrente de taquicardiomiopatia, situação em que seria benéfico controlar a freqüência mais estritamente.

Portanto, aém de avaliar veracidade e relevência de uma evidência científica, precisamos avaliar aplicabilidade. Aplicabilidade é o mesmo que validade externa. Ou seja, o resultado de um trabalho é aplicável no tipo de paciente que foi estudado.

Outra questão de aplicabilidade se refere ao braço lipídico do estudo ACCORD. Este não mostrou benefício do fibrato em diabéticos que usavam estatina. Porém devemos lembrar que a média de triglicérides foi 162 mg/dl neste estudo. Isso não quer dizer que diabéticos com hipertrigliceridemia importante não se beneficiem. Esta é uma hipótese sugerida pela análise do subgrupo de pacientes com triglicérides elevados. Mas esta hipótese precisa ser demonstrada em ensaios clínicos.

Em resumos, os trabalhos aqui discutidos nos lembram de dois princípios importantes: o desfecho primário define o resultado do estudo; e todo estudo deve ser avaliado quanto a sua validade externa (aplicabilidade).

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