terça-feira, 30 de março de 2010

Reforma da Saúde Americana e Medicina Baseada em Evidências



Na semana passada foi aprovado pelo congresso americano a Health Care Reform. Após uma batalha de vários meses contra os republicanos, Barack Obama conquistou o que provavelmente será seu maior legado. Algo que muitos tentaram, mas só agora o 44º presidente conseguiu este feito, após muito sacrifício, prejudicando inclusive sua popularidade.

Atualmente, o estado americano não oferece saúde universal para a população, tal como o SUS faz no Brasil. O estado americano confia na força de sua economia para gerar as coberturas de saúde, tendo apenas plano de saúde público para os idosos (Medicare) e para os muito pobres (Medicaide). Porém 46 milhões de americanos ficam sem cobertura de saúde, pois estes são intermediários, não têm condições de contratar um plano de saúde, porém não são tão pobres para qualificar no Medicaide.

A reforma de Obama tem três objetivos. Primeiro, oferecer serviço de saúde àqueles desprovidos deste benefício. Os republicanos não deixaram que houvesse um plano público, então o governo vai subsidiar os carentes na contratação de seus planos ou para alguns casos ampliar os critérios para o Medicaide. Segundo objetivo, impedir que planos de saúde neguem cobertura a pessoas com doenças pré-existentes ou cortem o cabertura de pessoas que desenvolvam doenças graves. Mas é só no terceiro objetivo que vemos a relação da reforma de saúde com a medicina baseada em evidências: reduzir os custos da saúde. Percebam, mesmo aumentando a cobertura para mais 46 milhões de pessoas, acredita-se que se pode reduzir os custos com a saúde. Como? Aplicando corretamente o conhecimento científico, gastos desnecessários podem ser prevenidos, ao passo em que a assistência à saúde melhora. É fazer melhor gastando menos. Parece uma coisa muito difícil, mas considerando a grande distorção que é a forma da medicina praticada nos Estados Unidos (no Brasil também), não é difícil melhorar.
Muitas de nossas postagens abordam esta questão. Só para citar algumas recentes, já comentamos de evidências de que tratamento clínico é tão eficaz quanto tratamento intervencionista para a doença coronária; comentamos que a maioria dos cateterismos realizados tem resultados normais; já criticamos alguns exames de triagem que não reduzem mortalidade, tendo grande potencial de prejudicar os pacientes e gerar custos. É só focar no que é bom para o paciente, reduzindo a medicina baseada em mercantilismo.

Nosso SUS é um exemplo de assistência universal. Porém ao passo que os Estados Unidos gastam $3.000/pessoa/ano com a saúde, sabem quanto se gasta o Brasil? Apenas $374/pessoa/ano. Se eles precisam racionalizar os custos, nós mais ainda, pois nossos recursos são muito limitados. Minha impressão pessoal é que falta assessoria baseada em evidências aos gestores do SUS, pois vemos muitas distorções.

Espero que a reforma da saúde nos Estados Unidos provoque também uma reforma do pensamento médico em direção ao paradigma da medicina baseada em evidências.

Curiosidade: acima está o vídeo em que o atrapalhado vice-presidente americano apresenta Obama quando da conquista da reforma de saúde. Sem perceber que os microfones captariam o som de suas palavras, Joe Biden falou no ouvido de Obama: This is a big fuking deal. Com atenção dá para ouvir exatamente isso. Percebam como Obama que estava sorrindo fica subitamente sério ao ouvir a empolgada saudação de seu vice.

domingo, 28 de março de 2010

Interrupção Precoce de Ensaios Clínicos

Ensaios clínicos truncados são definidos como aqueles interrompidos precocemente devido a detecção de benefício estatisticamente significante. Simulações estatísticas sugerem que estes trabalhos superestimam a magnitude do benefício do tratamento que está sendo avaliado.

Esta inferência acaba de ser comprovada cientificamente. Na semana passada, foi publicado no JAMA um estudo da McMaster University, que comparou o risco relativo de ensaios clínicos truncados com ensaios clínicos concluídos com obtenção do tamanho amostral inicialmente planejado. Em extensa revisão de literatura, os autores identificaram 217 estudos truncados. Em 91 destes artigos, foi possível identificar trabalhos com o mesmo objetivo, porém não truncados. Desta forma, os resultados dos 91 artigos truncados foram comparados com seus equivalentes não truncados.

Identificou-se que o risco relativo (risco droga/risco placebo) dos artigos truncados foi 29% menor do que o risco relativo dos artigos não truncados. Lembrem-se que quanto menor o risco relativo, maior o efeito benéfico da droga. Portanto, isto indica que a magnitude do efeito do tratamento é superestimada em 29% quando o estudo é interrompido com um número de pacientes recrutado inferior ao inicialmente calculado com base nas premissas estatísticas iniciais.

Isto não é um preciosismo. De fato, a cada paciente que entra em um estudo, ocorre uma variabilidade em torno do verdadeiro efeito da terapia. Portanto, se avaliarmos o efeito do tratamento em vários momentos durante a inclusão dos pacientes, em algum momento pode ocorrer uma diferença entre os grupos decorrente do acaso. Neste momento, o estudo é interrompido rapidamente, não permitindo que este acaso seja diluído com a inclusão dos futuros pacientes. É verdade que os critérios de interrupção são mais rígidos do que um valor de P menor que 0.05, porém o estudo do JAMA mostra que estes critérios não são suficientes para prevenir resultados incorretos.

É de interesse da indústria patrocinadora do estudo que este seja interrompido. Primeiro, porque há economia monetária na medida em que o trabalho fica menor e mais curto. Segundo, se garante a demonstração de um benefício antes que a inclusão de mais pacientes mostre que não há benefício. Ou garante a afirmação de um benefício maior do que o real.

Alguns argumentam questões éticas em manter o grupo placebo de uma terapia que foi demonstrada como benéfica antes do término do estudo. O problema é que esta análise interina não demonstra nada com certeza. Antiético é obter uma conclusão incorreta, que será aplicada a pacientes futuros. Inclusive, em 2/3 dos casos os estudos não truncados não mostraram benefício algum.

Paradoxalmente, os estudos truncados apresentaram o dobro da probabilidade de serem publicados em revistas de alto impacto, quando comparados aos seus pares não truncados (63% vs. 30%). Isto decorre do viés de publicação, em que estudos positivos têm mais aceitação pelas revistas do que estudos negativos.

O estudo do JAMA também identificou que o número de desfechos primários apresentados pelos estudos truncados foi um preditor importante da imprecisão dos resultados. Ou seja, quando da interrupção do trabalho, se menos que 500 pacientes tiverem apresentado desfecho, há maior probabilidade de superestimativa do benefício do tratamento.

O exemplo mais recente deste tipo de viés é o festejado estudo JUPITER, que demonstrou benefício da terapia com estatina em pacientes saudáveis, de risco intermediário e colesterol normal. Este estudo foi interrompido precocemente, quanto apenas 393 desfechos haviam ocorrido, ao passo que o planejamento inicial havia sido de 520 pacientes. Além disso, ao interromper o estudo, muitos dos pacientes incluídos não completaram o tempo de follow-up inicialmente previsto, de cinco anos. Na realidade, o estudo iniciou com 8900 pacientes por grupo, porém apenas 3800 foram seguidos por 2 anos, 1353 foram seguidos por 3 anos, e, pasmem, 157 por grupo foram seguidos por 5 anos. É uma aberração argumentar um NNT de 25 para cinco anos, pura extrapolação de uma magnitude de benefício implausível, obtida em um estudo interrompido precocemente, com número de eventos e tempo de seguimento inadequados para o teste de hipótese.

Pessoalmente, acredito que haja benefício do uso de estatina no cenário do estudo JUPITER. Porém não podemos acreditar na magnitude deste benefício, caracterizada como sendo tão grande quando em pacientes portadores de doença coronariana. Isso não foi provado e é implausível. O estudo apenas demonstra benefício estatisticamente significante, porém ficamos impossibilitados de saber corretamente a relevância deste tratamento (NNT), um critério muito importante para nosso julgamento clínico. Os autores ou patrocinadores perderam a oportunidade de descrever de forma precisa a relevância do benefício da rosuvastatina em pacientes de prevenção primária.

Em conclusão, este deve ser mais um critério de avaliação da veracidade de uma informação fornecida por um ensaio clínico. Estudos truncados não menos confiáveis. Inclusive, pode ser considerado antiético truncar um estudo com interesse nos seus resultados e sua interrupção precoce, pois os dados apresentados serão aplicados a pacientes futuros. O critério correto de interrupção de um estudo é segurança. Ou seja, quando um tratamento proposto apresenta precocemente efeitos adversos importantes, aí sim, justifica-se interromper o estudo.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Estudos de Não Inferioridade (por Júlio Braga)

Um estudo de não inferioridade é aquele que tenta demonstrar que, em relação a um desfecho específico, uma intervenção não é pior que outra já estabelecida. Para dizermos que não é pior, temos de determinar qual o limite de tolerância, até o qual podemos dizer que a intervenção é não inferior. Por exemplo, uma incidência de desfechos até 10 % maior que no grupo controle pode ser considerada não inferior: 11% vs 10% de reinfarto.

O limite desta tolerância não é constante entre os diferentes estudos, pois depende do tipo de desfecho avaliado e do que os autores consideram como aceitável. Podemos definir como “aceitável” 1% a mais de reinfarto mas não 1% a mais de óbitos. Este limite é determinado com um nível de significância estatística (valor de P) que estima se repetindo o estudo haveria 95% de chance da nova intervenção ser ser melhor ou até 1% pior. Esta tolerância com a possibilidade da nova intervenção ser ligeiramente pior se justifica quando há vantagens na utilização da nova intervenção: menos efeitos colaterais, maior facilidade na aplicação, menor custo, etc.

Porém, devemos ter uma visão crítica em relação à definição dos autores do que eles consideram não inferior. Por exemplo, no final do ano passado foi publicado o estudo Dabigatran versus Warfarin in the Treatment of Acute Venous Thromboembolism no New England Journal of Medicine. Este estudo pré-definiu o dabigatran (150mg de 12/12h) como não inferior à warfarin se a recorrência de tromboembolismo venoso e óbito associado fosse até 275% maior do que com warfarin. Ou seja, se a incidência de eventos com warfarin for de 2%, a incidência com dabigatran poderia ser de até 5,6% que seria considerado como não inferior.

A incidência foi desfechos combinados foi de 2,4% com dabigatran vs 2,1% com warfarin. O valor de P foi inferior a 0,001. Porém este valor de P foi calculado de acordo com os pressupostos acima. Se o pressuposto fosse de uma diferença menor, este valor de P seria menor. O intervalo de confiança a 95% da diferença absoluta na incidência de eventos entre os dois grupos foi de -0.8% a 1.5%. Ou seja, mesmo se a incidência de desfechos fosse de 3,6% com dabigatran vs 2,1% com warfarina, a primeira nova droga seria considerada não inferior. Essa diferença não seria muito grande?

Podemos considerar o dabigatran não-inferior? De acordo com os pressupostos para não inferioridade estabelecidos pelos autores, e estranhamente aceitos pelas comissões de ética em pesquisa, creio que não.
Texto escrito por Dr. Júlio Braga.

terça-feira, 23 de março de 2010

Estamos Indicando Cateterismo Corretamente ?


A utilização de métodos diagnósticos deve ser racionalizada para proporcionar benefício aos pacientes. No entanto, evidências demonstram que métodos diagnósticos têm sido utilizados em demasia, o que nem sempre beneficia os pacientes, pelo contrário. Em parte isso decorre da medicina defensiva, onde o médico considera que a solicitação de exames o protege contra questionamentos futuros. Ou simplesmente decorre do Paradigma do Médico Ativo, que se aplica também a exames: quanto mais exames solicitados, melhor o médico se sente por conhecer mais seu paciente.

Nada disso considera que a solicitação de um exame médico virá acompanhada de um resultado, o qual pode gerar uma cascata de acontecimentos, positivos ou negativos. Já postamos neste Blog a este respeito, quando comentamos sobre indicações de mamografia de rotina em pacientes com menos de 40 anos ou pesquisa de câncer de próstata. A indicação do exame deve ocorrer em circunstâncias adequadas.

Há duas semanas foi publicado no New England Journal of Medicine dados de um grande registro americano realizado por 660 hospitais, o qual descreve o resultado das angiografias coronárias de 400.000 pacientes com suspeita de doença coronariana, realizados entre 2004 e 2008. Este estudo mostrou que a maioria dos pacientes que realizam cateterismo não tem doença coronariana obstrutiva. Apenas 38% dos pacientes apresentavam obstrução coronária acima de 70% em pelo menos um vaso coronário (40% dos pacientes se o critério fosse estenose de 50%).

Esse dado sugere falta de eficiência dos médicos na indicação deste sofisticado e invasivo exame. Cateterismo cardíaco não é um exame de triagem, portanto não deveria ter uma grande quantidade de resultados negativos. Esta proporção de resultados negativos se aproxima do que ocorre com métodos de triagem, ou seja, o cateterismo está sendo indicado de forma muito liberal.

Realmente, o trabalho mostra que 67% dos pacientes que realizaram cateterismo eram assintomáticos ou tinham sintomas atípicos. Ou seja, eram pacientes com baixa probabilidade pré-teste, situação na qual o cateterismo cardíaco não está bem indicado.

Mas porque estes pacientes estão realizando cateterismo? O estudo também permite perceber a razão, pois ficou demonstrado que 85% dos pacientes realizaram testes para pesquisa de isquemia (tipo teste ergométrico, cintilografia miocárdica ou tomografia de coronária), o que em muitos casos devem ter mostrado um resultado positivo ou duvidoso, provocando a realização do cateterismo.

Porém, a interpretação de um teste diagnóstico não deve considerar apenas o resultado do teste (positivo ou negativo), deve considerar também a probabilidade pré-teste de doença. Este é o raciocínio Bayesiano ou probabilístico. Caso este raciocínio fosse aplicado, pacientes de baixo risco, mesmo com um teste positivo para isquemia não teriam probabilidade pós-teste suficientemente alta para induzir o cateterismo. Portanto, não é só a indicação dos exames que está inadequada, a interpretação também. Ou seja, muitas vezes o simples resultado de um teste positivo para isquemia é interpretado como provável doença, sem considerar a probabilidade pré-teste. Às vezes a probabilidade pré-teste é baixa o suficiente para que a probabilidade pós-teste de doença continue pequena mesmo com o teste positivo.

De fato, o estudo do NEJM mostra que os dados clínicos são mais fortes preditores de doença coronariana do que o resultado dos exames para pesquisa de isquemia. Ou seja, neste caso a clínica é soberana. Além disso, quando considerado todos os preditores clínicos no modelo multivariado, o resultado da pesquisa não invasiva de coronariopatia não incrementou a capacidade diagnóstica.

Desta forma, este trabalho nos traz evidência incontestável de que precisamos melhorar a indicação dos exames voltados para diagnóstico da doença coronária. O erro começa com a indicação desnecessária de exames não invasivos, como teste ergométrico, cintilografia miocárdica e mais recentemente angiotomografia de coronária em pacientes com baixa probabilidade de doença coronariana. Estes nem precisam fazer os exames. O segundo erro vem quando resultados positivos não são interpretados a luz da probabilidade pré-teste.
Por fim, como comentado na discussão do artigo, em pacientes estáveis, o único benefício do tratamento de revascularização é o controle do sintomas, portanto não há benefício clínico em diagnosticar doença coronariana silenciosa (salvo situações especiais). Só esta simples constatação já reduziria bastante as indicações desnecessárias de coronaniografia.
Precisamos melhorar a indicação de exames não invasivos e a interpretação destes. Isso reduziria o número de cateterismo desnecessários. Além disso, precisamos sempre antever qual o benefício concreto que uma eventual demonstração de coronariopatia obstrutiva no cateterismo traria para o paciente. Tudo isso baseado em evidências.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Mixing Apples and Oranges

Recebeu destaque neste Congresso do ACC uma metaanálise apresentada pelo britânico Keith Fox, respeitado cientista na área de síndromes coronarianas agudas (SCA). Esta meta-análise teve o objetivo de avaliar se a estratégia invasiva (CAT e angioplastia de rotina) é superior à estratégia seletiva em pacientes com SCA sem supradesnível do ST. Para isso o trabalho analisou conjuntamente os dados dos ensaios clínicos FRISC II, RITA-3 e ICTUS. Exatamente aqueles que discutimos em postagem recente.

O resultado mostrou superioridade da estratégia invasiva quando comparada à seletiva, em relação ao combinado de infarto e morte em seguimento de 5 anos. A particularidade é que a meta-análise combina três grandes estudos, dois deles da década de 90, que mostram benefício (FRISC e RITA-3) e outro contemporâneo (ICTUS) que não mostra benefício.

Meta-análises são mais úteis quando combinam trabalhos pequenos, sem poder estatístico. Quando combinados, estes trabalhos passam a desfrutar de poder estatístico adequado, pois o tamanho amostral fica maior.

Por outro lado, quando se têm três trabalhos grandes e de resultados heterogêneos, as discordâncias decorrem de diferenças intrínsecas dos trabalhos e não diferenças resultantes do acaso. Portanto é menos adequado combinar estes trabalhos.

Comentamos na postagem anterior que as diferenças destes trabalhos provavelmente se devem ao fato de que o tratamento medicamentoso na época dos estudos FRISC e RITA-3 era inferior ao tratamento atual. Por isso a estratégia invasiva fez diferença. Já o ICTUS não mostrou benefício da estratégia invasiva, na vigência do tratamento medicamentoso contemporâneo.

Ao fundir os resultados de 2 estudos favoráveis ao tratamento invasivo (N = 4.267) com 1 estudo desfavorável (N = 1200), claro que o tratamento invasivo leva vantagem.

Em meta-análises podemos fundir estudos heterogêneos, desde que a heterogeneidade se deva ao acaso decorrente do pequeno tamanho amostral entre os estudos. Mas se a heterogeneidade for decorrente da realidade de cada estudo, não é adequado fundi-los. Ou um vai anular o resultado do outro, gerando um resultado neutro, ou um vai prevalecer devido ao tamanho amostral. Este foi o caso da meta-análise do Dr. Fox.

Na prática clínica, o importante é estratificar os pacientes e dedicar a estratégia invasiva para os pacientes de alto risco. Nos de baixo risco, podemos ficar com a estratégia seletiva. Nos intermediários, a decisão final será mais individualizada.

terça-feira, 16 de março de 2010

O Ótimo é Inimigo do Bom

O ótimo é inimigo do bom. Esta é a principal mensagem dos estudos ACCORD e RACE II, que demonstraram ser o controle moderado da pressão arterial suficiente, mais fácil e seguro (bom), do que tentar controlar excessivamente a pressão arterial (ótimo) no diabético - ACCORD; o mesmo aconteceu com o controle moderado da freqüência cardíaca na fibrilação atrial permanente (bom), em relação ao controle mais estrito da freqüência (ótimo) – RACE II. Nem sempre o que parece ser uma estratégia mais rigorosa (ótimo) representa uma vantagem terapêutica.

Lembrado isso, precisamos detalhar um pouco mais estes trabalhos.

O estudo ACCORD não mostrou benefício no desfecho primário, que foi definido como o combinado de morte cardiovascular, infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral. Porém se analisado o objetivo secundário de AVC isoladamente, observa-se que há uma redução neste desfecho, a qual alcança significância estatística. Então, como interpretar este estudo: negativo ou positivo? A interpretação deve ser baseada no objetivo primário, para o qual o estudo foi dimensionado. Nunca o resultado de um desfecho secundário deve prevalecer sobre o desfecho primário. Como já comentamos neste Blog, o estudo não é dimensionado para uma diferença no objetivo secundário. Portanto, se esta diferença é observada, a probabilidade do acaso é maior do que o expressado pelo valor de P. Neste caso, existe o problema dos múltiplos testes, ou seja, há vários objetivos secundários, o que aumenta a probabilidade de um deles aparecer significativo por acaso. Portanto, o estudo é negativo.

Desfecho secundário serve para avaliar se um benefício observado no desfecho primário é resultado do benefício em todos os desfechos individuais. Ou para gerar hipóteses, que devem avaliar ser testadas em estudos dimensionados para tal. Finalmente, mesmo se fosse um efeito verdadeiro, o NNT para prevenir o AVC seria de 89 em 8 anos, um benefício de pequena magnitude.

Então, o achado relativo ao risco de AVC não deve nos influenciar no tratamento anti-hipertensivo. Ficamos com a meta de pressão abaixo de 140 mmHg. Isso não quer dizer que precisamos reduzir as drogas se o indivíduo ficar com pressão menor que 120 mmHg após um esquema terapêutico inicial. Mas se a pressão estiver em 135 mmHg, não precisamos associar mais drogas.

No diabético com disfunção renal, esta ainda é uma questão em aberto, pois estes pacientes foram excluídos. Talvez diabéticos de maior risco se beneficicem. Mas isso precisa ser demonstrado. Há outro estudo que está sendo desenhado pelo NIH para avaliar esta questão em diabéticos de alto risco. Mas só teremos este resultado daqui a uns 10 anos.

Quanto ao controle estrito versus liberal da freqüência cardíaca em pacientes com fibrilação atrial permanente (RACE II), devemos lembrar que este estudo não incluiu pacientes com insuficiência cardíaca descompensada. O que nos faz pensar que se estivermos com um paciente cuja freqüência de 105 bpm e insuficiência cardíaca aguda, pode ser útil controlar melhor a freqüência. A insuficiência cardíaca pode ser decorrente de taquicardiomiopatia, situação em que seria benéfico controlar a freqüência mais estritamente.

Portanto, aém de avaliar veracidade e relevência de uma evidência científica, precisamos avaliar aplicabilidade. Aplicabilidade é o mesmo que validade externa. Ou seja, o resultado de um trabalho é aplicável no tipo de paciente que foi estudado.

Outra questão de aplicabilidade se refere ao braço lipídico do estudo ACCORD. Este não mostrou benefício do fibrato em diabéticos que usavam estatina. Porém devemos lembrar que a média de triglicérides foi 162 mg/dl neste estudo. Isso não quer dizer que diabéticos com hipertrigliceridemia importante não se beneficiem. Esta é uma hipótese sugerida pela análise do subgrupo de pacientes com triglicérides elevados. Mas esta hipótese precisa ser demonstrada em ensaios clínicos.

Em resumos, os trabalhos aqui discutidos nos lembram de dois princípios importantes: o desfecho primário define o resultado do estudo; e todo estudo deve ser avaliado quanto a sua validade externa (aplicabilidade).

segunda-feira, 15 de março de 2010

American College of Cardiology Sessions


Os resultados dos trabalhos apresentados no congresso do American College of Cardiology servem principalmente para lembrar o principal paradigma da Medicina Baseada em Evidências: plausibilidade não é suficiente para garantir benefício e antes de propor novas condutas médicas precisamos demonstrar eficácia. Muitas vezes a evidência final não mostra exatamente o que esperamos, pois prever a reação de sistemas biológicos é impossível – são sistemas complexos, caóticos. Segundo, os resultados dos principais trabalhos mostram que oferecer mais tratamento nem sempre é a melhor escolha.

Em resumo os trabalhos apresentados na sessão principal do congresso mostram que (1) em diabéticos, reduzir a pressão arterial sistólica para menos que 120 mmHg não é melhor do que a meta de 140 mmHg (ACCORD); (2) em pacientes com fibrilação atrial persistente, controlar a freqüência cardíaca para menos que 80 bpm não é melhor do que a meta de 110 bpm (RACE II); (3) em diabéticos, utilizar fibrato não oferece benefício adicional, apenas estatina é suficiente (ACCORD); (4) em pré-diabéticos, o uso precoce de hipoglicemiante oral e valsartan não protege o paciente contra eventos cardiovasculares, nem reduz incidência de diabetes (NAVIGATOR); (5) após angioplastia com stent farmacológico, o uso de Clopidogrel por mais de 1 ano não oferece benefício adicional (DES-LATE); (6) neste mesmo tipo de paciente, associar um terceiro antiagregante plaquetário, Cilostazol, não traz benefício (CILON-T).

Interessante, os 6 trabalhos que havíamos selecionado como mais importantes foram negativos. Nenhum nos induz a utilizar mais tratamento. O problema é que alguns destes tratamentos já vinham sendo propostos, uns pela indústria (Cilostazol) e outros por guidelines respeitáveis (meta de pressão e freqüência cardíaca). É o caso do entusiasmo superando as evidências.

A Mentalidade do Médico Ativo mais uma vez se mostra inadequada. Muitas vezes os médicos se sentem bem ao tratar com mais drogas, pois isso gera uma sensação de estar protegendo mais os pacientes. Porém nem sempre isso é verdade.

Vejam a questão do primeiro trabalho, o ACCORD, que nega o benefício do tratamento agressivo da pressão arterial em diabéticos. Seu autor, Dr. Cushman, é também um dos autores do JNC, o guideline americano sobre o tratamento de HAS. Em uma discussão informal, neste congresso, ele admitiu ter sido voto vencido quando o JNC recomendou tratar mais agressivamente a pressão arterial de diabéticos. Em sua opinião, esta foi uma recomendação sem base científica, que implica em maior número de drogas, maiores dosagens e mais efeitos colaterais, tal como ficou demonstrado no estudo ACCORD. Vale salientar que este estudo foi financiado pelo NIH, portanto sem influência da indústria farmacêutica.

O mesmo raciocínio pode ser feito com o controle da freqüência cardíaca; vinha sendo recomendada uma meta de 80 bpm, sem evidências. No estudo apresentado hoje, o número de drogas, dosagens e efeitos colaterais também foram maiores no grupo de tratamento rigoroso da freqüência cardíaca.

Se por um lado, estes resultados podem ser vistos como negativos (ausência de benefício), por outro lado demonstram de que os esquemas terapêuticos baseados em evidências são efetivos, e melhorar o que já fazemos bem não é muito fácil. Filosoficamente, os dados apresentados podem ser interpretados como positivos no sentido de que não há necessidade em complicar mais o que já fazemos. Não precisa prescrever tanta droga. Já usamos AAS e Clopidogrel após angioplastia, não precisa usar Cilostazol também.

O que mais me surpreendeu foi a ausência de benefício em prolongar por mais de um ano o Clopidogrel. Este eu esperava que fosse positivo. A incidência de desfechos no segundo ano após angioplastia foi abaixo do esperado, portanto o estudo teve um poder estatístico abaixo do planejado inicialmente. Isso nos faz pensar que se o estudo tivesse o dobro de pacientes talvez mostrasse benefício. Por outro lado, se a incidência de eventos foi tão baixa, mesmo que haja benefício em prolongar o Clopidogrel, a redução de eventos será de pequena magnitude em termos absolutos. Além disso, os presentes dados não mostram nenhuma tendência.

Portanto, tudo converge para uma medicina baseada no princípio da economia. Ou seja, só prescrever o que for necessário. E necessário é o que reduz eventos de acordo com ensaios clínicos.

Todos estes estudos já estão publicados ahead of print no New England Journal of Medicine. Agora é hora de ler os artigos de forma integral. Com certeza veremos detalhes não perceptíveis nas apresentações do congresso.

segunda-feira, 8 de março de 2010

O Check-up de Barack Obama


Em Editorial recém publicado nos Archives of Internal Medicine, Rita Redberg criticou a inclusão do escore de cálcio coronário no check-up de Barack Obama. De acordo com a autora, o presidente americano é de baixo risco cardiovascular e este exame não traria informação adicional. Além disso, como já comentamos neste Blog, os modernos exames de tomografia multi-slice oferecem uma quantidade não desprezível de radiação e não devemos banalizar as indicações.

A crítica ao check-up do presidente americano é embasada no paradigma de que são os pacientes de risco intermediário que se beneficiam do escore de cálcio. Há uma lógica de que o risco intermediário será reclassificado para baixo ou alto risco. Sendo assim, Obama não se beneficiaria do exame, pois ele é de baixo risco.

Se por um lado, esta crítica aparenta propor uma racionalidade na utilização do exame, por outro lado existe um marketing disfarçado neste tipo de afirmação. Ou seja, para o executor no exame, é melhor o paradigma de que são os indivíduos de risco intermediário que devem fazer o exame, pois estes são a maioria dos pacientes em consultórios cardiológicos, o que gera um maior volume de exames. Ao mesmo tempo em que nega a indicação para pacientes como Obama, a autora indica o teste para indivíduos de risco intermediário.

Mas existem evidências demonstrando que há mais benefício clínico em realizar escore de cálcio nos pacientes de risco intermediário, do que nos de baixo risco? Não.
E não faz muito sentido, por três motivos: primeiro, a estratégia preventiva de pacientes de risco intermediário já é muito semelhante à de pacientes com alto risco, sem doença cardiovascular. Não mudaria conduta. Segundo, não temos autorização científica para deixar de utilizar estratégias em um paciente de risco intermediário, baseado um resultado de escore de cálcio baixo. Não se sabe se a subestimativa do risco é benéfica ou se expõe mais os pacientes. Terceiro, grande parte dos pacientes de risco intermediário são de risco intermediário mesmo, e não devem ser reclassificados.

Por outro lado, quem potencialmente mais se beneficia dos escore de cálcio são os pacientes do tipo Obama. Ou seja, há um subgrupo de pacientes de baixo risco, que o Escore de Framingham pode estar subestimando o risco. E isso ocorre em duas situações: no tabagismo ou na história familiar para DAC precoce. O Framingham incorpora tabagismo de forma simplória e dicotômica, enquanto história familiar nem é considerada neste escore e mesmo se fosse, sua penetração fenotípica é imprevisível.

Obama tem 48 anos, segundo a Rede CNN tem colesterol total de 209, HDL-colesterol de 62, pressão arterial normal e é tabagista. Desta forma, seu risco de Framingham é 9%, ainda na categoria de baixo risco. Porém ao considerar Obama tabagista, não estamos considerando quantos cigarros ele fuma, nem há quantos anos ele fuma. E mesmo se considerássemos, cada um responde de uma forma diferente ao cigarro. Por isso que os tabagistas não são bem representados pelos escores clínicos. Aí que entra o Escore de Cálcio. Ele vai nos dizer se Obama é de baixo risco mesmo. E mudar o conceito de um paciente de baixo risco para risco moderado, ou até mesmo para alto risco, implica em uma mudança de conduta muito mais relevante do que reclassificar um indivídio de risco moderado para alto risco.

Portanto, a Editora do Archives of Internal Medicine entrou no discurso marketeiro de fazer escore de cálcio para indivíduos de risco intermediário, ao mesmo tempo perdendo a oportunidade de exemplificar com o caso do presidente americano qual o subgrupo de pacientes que potencialmente mais se beneficia deste exame.

Claro, este subgrupo dos pacientes de baixo risco representa um número bem menor do que toda a população de risco intermediário. Seria menos lucrativo para os serviços de tomografia. Paradoxalmente, é exatamente com estes gastos descenessários que Obama está preocupado.

Curso de Medicina Baseada em Evidências

Medicina Baseada em Evidências
Da visão crítica à tradução da ciência para a prática clínica

Corpo Docente: Luís Cláudio Lemos Correia
Doutor em Medicina e Saúde
Professor Permanente da Pós-graduação da Escola Bahiana de Medicina
Vice-Presidente do Grupo de Cardiologia Baseada em Evidências - Sociedade Brasileira de Cardiologia

Objetivos Didáticos

1. Despertar visão crítica em relação a evidências científicas.
2. Análise sistematizada da qualidade e impacto de evidências científicas.
3. Tradução do conhecimento científico na prática clínica.

Conteúdo Detalhado
· O Paradigma da Medicina Baseada em Evidências
· Análise crítica de evidências científica sobre tratamento médico
· Análise crítica de evidências científicas sobre métodos diagnósticos
· Raciocínio clínico risco/benefício e árvore de decisão clínica
· Raciocínio clínico probabilístico
· Raciocínio prognóstico probabilístico

Público-Alvo
Médicos, profissionais de saúde, estudantes de medicina e saúde
Número de Vagas: 50

Inscrições Abertas
Telefone: 71-3276-8265
Pós-graduação da EBM

Carga Horária: 16 horas
Datas e Horário
08 de abril (quinta-feira): 18 – 22h
09 de abril (sexta-feira): 18 – 22h
10 de abril (sábado): 8 – 12h e 14 – 18h

Local
Campus de Brotas da Escola Bahiana de Medicina

Investimento: R$ 250,00 à vista ou parcelado em 02 parcelas fixas de R$ 125,00

sexta-feira, 5 de março de 2010

Maratona ou Caminhada? Faça o que Preferir

Mereceu destaque nesta semana, em sites médicos, um trabalho de coorte prospectiva, envolvendo 43.000 indivíduos, apresentado no congresso Cardiovascular Disease Epidemiology and Prevention. Este estudo avaliou a associação entre desfechos cardiovasculares e diferentes níveis de exercício físico, mensurados por volume de treinamento e intensidade. A incidência de eventos cardiovasculares foi inversamente proporcional ao volume e intensidade do exercício, porém as diferenças foram de pequena magnitude. Não podemos analisar este trabalho plenamente, pois ainda não está publicado na íntegra. Mesmo assim, vamos lá pois o assunto é estimulante.

Podemos tirar algumas conclusões parciais: primeiro, níveis vigorosos de exercício não aumentam eventos cardiovasculares. Essa sempre foi uma preocupação, mas parece que não há o que se preocupar. Se quiser, pode correr uma maratona. Você provavelmente não vai morrer. Mas mesmo se morrer, morreu em grande estilo e de forma não estatisticamente significante.
Segundo, faz pouca diferença se você correr uma maratona ou se você caminhar diariamente. O benefício adicional de maiores níveis de exercício é de pequena magnitude.

Já reconheci neste Blog que não há evidência definitiva de que exercício físico seja benéfico do ponto de vista cardiovascular. Plausibilidade biológica e estudos observacionais sugerem benefício, mas não há ensaios clínicos testando desfechos clínicos. Portanto, a inferência deste estudo não é definitiva.

Embora não tenha sido clinicamente relevante (não precisar correr maratona), a presença do gradiente dose-resposta sugere uma relação causal entre exercício e proteção cardiovascular. Sugere ...
Como o exercício traz benefícios comprovados em qualidade de vida, temos embasamento para sugerir aos pacientes. Mesmo assim, devemos esparar da comunidade científica que surjam evidências experimentais a este respeito.

Enquanto isso, cada um pode fazer sua opção: maratona ou caminhada ?

Cobertura Congresso ACC 2010


No próximo final de semana começará o congresso de cardiologia do American College of Cardiology (ACC), em Atlanta. Os dois mais importantes congressos americanos em cardiologia são o ACC e o Congresso do American Heart Association, sendo o primeiro mais clínico e o segundo mais científico.

Este Blog fará cobertura local do congresso do ACC, trazendo nossa análise crítica das evidências lá apresentadas. Fica mais interessante quando antecipamos os acontecimentos, por isso descrevemos abaixo os trabalhos que imagino terão maior impacto neste congresso.

Ensaio Clínico ACCORD (braço lipídico): Em pacientes com DM tipo 2, o uso de fibrato traz benefícios adicionais ao uso de estatina? Randomização: Fenofibrato + Estatina versus Placebo + Estatina. Este ensaio clínico é dimensionado para avaliar benefícios em eventos clínicos cardiovasculares (morte, infarto ou AVC). Este é aquele mesmo ensaio clínico que não mostrou benefício do tratamento agressivo da glicemia, que por sinal aumentou mortalidade.

Ensaio Clínico ACCORD (braço hipertensão): Em pacientes com DM tipo 2, o tratamento agressivo da pressão arterial é benéfico? Randomização: Meta PAS menor que 120 mmHg versus meta PAS menor que 140 mmHg.

Ensaio Clínico EVEREST II: Avaliação da eficácia e segurança do tratamento percutâneo da insuficiência mitral. Randomização: Tratamento percutâneo versus cirúrgico. Desfecho primário: combinado de morte, necessidade de cirurgia ou retorno da insuficiência mitral severa em 12 meses.

Ensaio Clínico RATE II: Em fibrilação atrial permanente, precisa mesmo colocar a frequência cardíaca abaixo de 80 bpm? Randomização: Fc menor que 80 bpm versus Fc menor que 110 bpm. Este é um estudo de não inferioridade, ou seja, a hipótese é que o controle menos estrito da freqüência cardíaca não é inferior ao controle estrito. Desfecho primário: combinado de internamento por IC, AVC, embolia sistêmica.

Ensaio Clínico CILON-T: Após stent farmacológico associar Cilostazol ao tratamento padrão traz benefício? Randomização: Cilostazol versus placebo em paciente em uso de AAS e Clopidogrel. Desfecho primário: morte, infarto, AVC e necessidade de revascularização em 6 meses.
Optimal Duration of Dual Antiplatelet Therapy After Drug-Eluting Stents Implantation: Há benefício em manter Clopidogrel por mais de um ano em pacientes com stent farmacológico? Randomização: Clopidogrel + AAS versus Placebo + AAS após um ano da angioplastia. Desfecho: morte, infarto, AVC, sangramento até 3 anos de seguimento.

Fiquem ligados.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Novo Hipoglicemiante Liberado pelo FDA

Em recente post sobre a Rosiglitazona, comentamos do hábito do FDA em liberar drogas baseando-se em desfechos substitutos. Muitas vezes esta precipitada atitude resulta na necessidade de suspensão de uma droga que nunca deveria ter sido comercializada. Esta semana, mais um novo hipoglicemiante oral foi liberado pelo FDA, baseado apenas em estudos que mostram redução de glicemia (desfecho substituto). Trata-se do Liraglutide, um antagonista do receptor GPL-1 (glucagon-like-peptide -1).

Pode ser que esta droga seja benéfica, pois ajuda a controlar a glicemia. Mas pode ser que seja maléfica. Há evidências em animais de que o Liraglutide causa câncer e há relatos em humanos de maior incidência de pancreatite. Fora os efeitos cardiovasculares, que não se sabe ao certo. A incerteza é tão grande que em Perspectiva publcada no New England Journal of Medicine, Parks & Rosebraugh afirmaram: physicians will need to carefully review the prescribing information and decide whether the benefit–risk profile is favorable for each individual patient.

Desse jeito, é melhor esperar para depois não haver arrependimento na liberação. Mas se a droga for liberada pela nossa ANVISA (que geralmente imita o FDA), espero que os médicos não caiam nesse conto de novo. O ideal é deixar a droga nas prateleiras até as evidências clínicas surgirem. Lembrem-se do Vioxx, Cerivastatina, Sibutramina, Rimonabant, Rosiglitazona ...

terça-feira, 2 de março de 2010

Por que a Estratégia Invasiva é Semelhante à Seletiva em SCA ?

Já comentamos em postagem anterior que, na doença coronariana estável, o tratamento medicamentoso tem eficácia semelhante à angioplastia, em relação aos desfechos de óbito ou infarto. O único benefício é na melhora da angina, ou seja, qualidade de vida. Por outro lado, o paradigma vigente na comunidade cardiológica é que em pacientes com síndromes coronarianas agudas (SCA) a realidade é outra, ou seja, angioplastia é melhor que tratamento clínico na prevenção de desfechos clínicos importantes. No entanto, na semana passada foi publicado no Journal of the American College of Cardiology um estudo que contradiz este paradigma. Trata-se do seguimento de 5 anos do Ensaio Clínico ICTUS, aquele que randomizou 1.200 pacientes com SCA sem supradesnível do segmento ST para cateterismo de rotina seguido de angioplastia quando indicado (estratégia invasiva) ou cateterismo apenas em pacientes que não estabilizaram ou com teste funcional positivo, seguido de angioplastia (estratégia seletiva). O estudo mostrou que a estratégia invasiva não previne infarto espontâneo (não relacionado a angioplastia) ou morte, quanto comparada à estratégia seletiva. E mais, este resultado é consistente nos grupos de risco baixo, intermediário e alto.

Estes resultados são diferentes dos dois outros grandes ensaios clínicos voltados para esta questão: o FRISC e o RITA-3, ambos realizados no final da década de 90. O seguimento de 5 anos do FRISC não mostrou redução de mortalidade, mas mostrou redução de infarto. O seguimento de 5 anos do RITA-3 mostrou redução de morte cardiovascular e infarto. Análises de subgrupo demonstram que estes benefícios se limitam a pacientes de maior risco.

Mas qual onde está a verdade? No ICTUS ou nos FRISC/RITA-3.

Primeiro, estes estudos discordam basicamente nos pacientes de risco alto, pois o FRISC e o RITA-3 também não mostravam benefício nos subgrupos de menor risco. Nos pacientes de risco alto, todos estes estudos estão certos para suas épocas. A diferença é que o FRISC e o RITA-3 foram realizados em uma era quando o tratamento farmacológico era menos efetivo. Por exemplo, naquela época não se utilizava Clopidogrel, a terapia com estatina após síndromes coronarianas agudas não tinha benéfico comprovado, e os principais estudos comparando enoxaparina e heparina não fracionada ainda não haviam sido publicados quando do início da randomização.
Isso nos faz concluir que à luz do tratamento farmacológico atual (ICTUS), não há benefício da estratégia invasiva em relação à prevenção de infarto e óbito cardiovascular. Por outro lado, há um benefício da estratégia invasiva demonstrado pelo ICTUS, que é a redução na necessidade de rehospitalização por sintomas recorrentes, ou seja, mais uma vez qualidade de vida.

Vejam que interessante: é a mesma coisa demonstrada pelo estudo Courage em pacientes estáveis, o benefício é em qualidade de vida. O paradigma não é diferente em síndromes coronarianas agudas! Na verdade os dados a respeito de procedimentos de revascularização em geral são sempre mais consistentes quando o desfecho é controle de sintomas e menos consistentes quando os desfechos são infarto ou morte. O que reduz eventos cardiovasculares maiores é o tratamento farmacológico.
E é fácil de explicar o porque: a doença aterosclerótica representa um acometimento difusa nas artérias coronárias e não um problema focal. Quanto se faz angioplastia, o tratamento é limitado a uma placa aterosclerótica que foi dilatada, sobrando umas 200 placas menores que continuaram da mesma forma. Por outro lado, quando se administra uma droga todas estas 201 placas são tratadas.

E então, esta evidência quer dizer que não devemos realizar angioplastia em pacientes com SCA? Claro que não. Primeiro, nos pacientes que não estabilizam, este é o melhor caminho. Segundo, os pacientes se beneficiam do controle dos seus sintomas e isso previne reinternamentos. Na verdade, quando se opta por uma estratégia seletiva, isso não quer dizer contra-indicar cateterismo ou revascularização, pois de acordo com o protocolo, 54% dos pacientes acabam recebendo revascularização.
Por outro lado, a informação de que não há benefício em morte e infarto, nos permite contemporizar a realidade do paciente, podendo decidir pelo mais ou menos invasivo. Em pacientes de alto risco, a tendência é ser mais invasivo, porém podemos ser mais conservadores naqueles com maior risco de sangramento, pré-dialíticos, anatomia previamente conhecida e complexa, considerando também a opção do paciente. Sabendo que na maioria dos pacientes o real benefício se limita a qualidade de vida, ficamos mais livres para uma decisão individualizada.


Não basta saber se um tratamento é ou não benéfico. Precisamos ir além e avaliar sempre o tipo de benefício e a magnitude deste benefício.
Assim fica mais fácil tomar decisões baseadas em evidências.